Brasil pode transformar Bolsa Família em rede ampla de proteção social, diz OCDE
A criação de um programa de renda mínima no país está em discussão no Ministério da Economia neste momento e é bem vista pela instituição
O Brasil deve aproveitar a pandemia para criar uma rede maior de proteção social a partir da ampliação do programa Bolsa Família. A afirmação é do economista de Brasil da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), Jens Arnold.
A criação de um programa de renda mínima no país está em discussão no Ministério da Economia neste momento e é bem vista pela instituição, que reúne entre seus membros países ricos e alguns em desenvolvimento. Nesta quarta, a OCDE divulgou projeções que apontam para uma queda de até 9,1% do PIB brasileiro em 2020, caso haja uma segunda onda de disseminação do coronavírus no último trimestre deste ano.
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PERGUNTA - Como vocês chegaram a esses dois cenários, um deles prevendo um segundo surto de coronavírus que abortaria a reabertura e a retomada gradual das atividades econômicas?
JEANS ARNOLD - Isso foi fruto de uma consulta com especialistas na área de saúde que fizemos na OCDE. A conclusão dessas consultas foi que temos dois cenários praticamente de igual probabilidade. Um em que este surto vai diminuindo pouco a pouco e não volta, e um segundo cenário no qual a pandemia volta com um novo surto no quarto trimestre deste ano, com um retorno às medidas de isolamento social, com impacto econômico em todo o mundo.
P. - Essa segunda onda será diferente da primeira no seu alcance, considerando que houve um aprendizado em relação à primeira?
JA - Todos os países aprenderam alguma coisa nos últimos meses. Foi uma crise inédita. Então, a presunção é que o segundo surto teria um efeito econômico mais ou menos na metade do que teve o primeiro, levando em conta que os países já estão mais preparados hoje do que em março. Quando um país entra em confinamento, quando se aplicam medidas de isolamento social, isso afeta o consumo privado e o investimento. Nos dois cenários, vemos que esse efeito foi muito forte no segundo trimestre de 2020 e, no caso do segundo surto da pandemia, haveria uma queda importante do consumo e do investimento no quarto trimestre deste ano. Isso quer dizer que toda a recuperação se daria mais tarde.
P. - Os problemas políticos que o Brasil enfrenta vão tornar a crise econômica mais severa para o país ou prejudicar a recuperação após essa crise?
JA - Estamos observando o que está acontecendo, mas não estimamos o impacto disso. Somente podemos esperar que o Brasil consiga estabelecer um consenso político ao redor das reformas que são essenciais para a recuperação econômica.
PERGUNTA - Como vocês avaliam o alcance das medidas de isolamento que foram adotadas pelo Brasil nesses últimos meses e o impacto que elas tiveram na economia? A reabertura das atividades a partir de junho pode trazer uma recuperação mais rápida ou antecipar um segundo surto? O país acertou ou errou na forma como foi feito o isolamento?
JA - Somos uma instituição que faz projeções e análises econômicas. A questão de fazer medidas de isolamento é uma decisão política e há diferentes opiniões sobre qual a melhor maneira de fazer isso.
Podemos ter alguma ideia de qual vai ser o impacto econômico da pandemia. No caso do Brasil, levando em conta a estrutura econômica, as medidas de isolamento causam uma redução de mais ou menos 20% da atividade econômica. Não quer dizer que a alternativa de não entrar em isolamento seria menos custosa economicamente. Do ponto de vista humano, sanitário e econômico, seria bom conter o surto e fazer com que o vírus não se espalhe mais.
P. - O relatório traz uma recomendação de fortalecimento da rede de proteção social dos mais vulneráveis, algo que está sendo pensado pelo governo. Qual o modelo que vocês colocam?
JA - Uma oportunidade gerada por essa pandemia é o que as políticas públicas alcançaram no âmbito da ajuda aos trabalhadores informais, mais de 50 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade. Talvez seja uma oportunidade para o Brasil pensar em como pode fortalecer a proteção social. Em um contexto onde um terço ou mais da população são trabalhadores que não têm um emprego formal, as ferramentas de proteção do trabalho formal não alcançam as pessoas que mais precisam. O Bolsa Família é um programa extraordinário, não perfeito, mas extraordinário, que tem toda possibilidade de ser expandido e ser a base de uma rede de proteção social. Há dois desafios. Você teria de aumentar o benefício e o limite de participação no programa e, ao mesmo tempo, dar ao programa uma maneira mais rápida de reagir. Quando a pessoa perde seu emprego, ela precisa de ajuda na semana seguinte, não três meses depois. As bases para construir uma rede de proteção social assim estão presentes no Brasil.
P. - Como vocês avaliam as medidas já adotadas pelo governo brasileiro para mitigar o impacto da pandemia na renda?
JA - Foi uma das reações mais fortes na América Latina em termos de porcentagem do PIB, sobretudo olhando a despesa nova. O Brasil teve um incremento do gasto primário de mais de 6% do PIB. É uma ação forte e também bem dirigida às famílias mais vulneráveis e para as empresas.
É um impacto fiscal grande em um país que já vinha com um nível elevado de endividamento.
A pandemia é um choque temporário. A resposta das políticas tem de ser também temporária, talvez com algumas muito poucas exceções. É importante o Brasil tirar uma lição do que aconteceu na crise financeira global [de 2008/2009], a última grande crise, que causou aumento permanente do gasto público. O Brasil hoje não tem espaço fiscal para repetir isso, tem de voltar a uma trajetória de ajuste fiscal para assegurar a sustentabilidade da dívida uma vez que a pandemia tiver passado. O Brasil poderia já se comprometer com algumas dessas reformas, mesmo sem fazer o ajuste neste momento. Estou me referindo a ajustes na folha de pagamento do setor público e também na redução de subsídios e gastos tributários. Isso vai ser uma das prioridades depois da pandemia.