Brasileiros ganham menos de R$ 10 por hora para treinar inteligência artificial
Os adestradores digitais despendem horas e cliques para identificar textos, imagens e áudios para o aprimoramento de sistemas de IA em troca de alguns dólares por hora
Enquanto falava com a reportagem do Globo por telefone, o estudante catarinense Guilherme Graper, de 23 anos, avaliava textos gerados por inteligência artificial (IA). Em alguns segundos, ele classificava como adequadas ou não as mensagens de um robô virtual para interação com consumidores. Para cada dez cliques, Graper receberia US$ 0,30 — o equivalente a R$ 1,46.
A mais de 3 mil quilômetros dali, o paraibano Arthur Santos, de 33 anos, divide o dia entre os estudos e trabalhos on-line similares. O mais comum, no caso dele, é ouvir áudios aleatórios e descrevê-los para aprimorar sistemas de reconhecimento de voz. Ele costuma ganhar US$ 20 (R$ 91) por quatro horas de trabalho.
Os dois são parte de um exército global de adestradores digitais que despendem horas e cliques para treinar algoritmos, identificando textos, imagens e áudios para o aprimoramento de sistemas de IA em troca de alguns dólares por hora — no Brasil, menos de R$ 10, em média. Não há um dado oficial sobre quantas pessoas no mundo exercem essas funções, chamadas de microtrabalho.
Em 2021, um grupo de pesquisadores do Instituto de Internet da Universidade de Oxford, no Reino Unido, identificou 163 milhões de perfis de usuários cadastrados em plataformas que prestam esse tipo de serviço às gigantes de tecnologia.
Uma parte significativa dessa força de trabalho digital está em países em desenvolvimento na Ásia, África e América Latina. O Globo conversou com brasileiros que estão entre essas pessoas.
Para fazer esse trabalho é preciso se cadastrar em uma dessas plataformas, que oferecem oportunidades de tarefas on-line e determinam o preço de cada uma. As chamadas microtarefas são distribuídas em redes que envolvem pessoas espalhadas pelo mundo dispostas a desempenhar funções rápidas e, muitas vezes, repetitivas na frente do computador.
A remuneração muda de acordo com a plataforma e pode ser por hora ou clique.
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Desconforto e ansiedade
Um estudo liderado por Matheus Braz, professor-assistente da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), publicado em junho deste ano, identificou 54 plataformas desse tipo operando no Brasil. Em média, microtrabalhadores brasileiros ganham US$ 1,80 (R$ 8,80) por hora, menos que a média de US$ 4,43 (R$ 21,60) dos países em desenvolvimento.
Muitos usam as tarefas para complementar renda, mas um terço deles não tem outra fonte de ganho, e a maioria é de mulheres, aponta a pesquisa.
Os brasileiros contam que já desempenharam vários papéis nesse trabalho, alguns nada confortáveis e outros, angustiantes. Uma das tarefas envolvia observar fotos de olhos humanos e circular, na imagem, a parte referente a uma íris. Em outro caso, era preciso identificar, em vídeos de carros em movimento, a passagem de pessoas na rua — provavelmente para treinar sistemas de carros autônomos.
Outra tarefa consistia em fazer fotos e vídeos de movimentos e gestos da própria mão, o que poderia ensinar uma máquina a compreender linguagem não verbal.
As tarefas mais desgastantes envolvem a categorização de conteúdos sensíveis gerados por robôs de IA, como discursos violentos ou preconceituosos. Há ainda as tarefas caracterizadas no estudo da UEMG como “estranhas”. Um exemplo foi dado por uma trabalhadora brasileira ouvida pelos pesquisadores.
Ela tinha que tirar fotos das fezes do seu cachorro em diferentes ângulos, para treinar um sistema de IA para robôs aspiradores. Uma parte do trabalho, no entanto, pode ser mais simples, como categorizar imagens, identificar elementos em vídeos, fazer pequenas traduções ou classificar a qualidade de textos.
— Existem algumas nuances aqui. A depender da situação de trabalho pregressa da pessoa, o microtrabalho é uma alternativa que eles consideram positiva. O problema é que, quanto mais dependente o trabalhador se torna das plataformas, mais ansiogênica ela é para ele — diz Braz.
Submundo revelado
A ansiedade é um dos sintomas sentidos por Arthur Santos desde que começou a trabalhar com microtarefas, há quatro anos. Graduado em Tradução pela Universidade Federal da Paraíba, ele busca se especializar em programação para migrar para a área de tecnologia. O trabalho nas plataformas é, hoje, sua principal renda. Por isso, evita sair:
— Se você não estiver em casa, perde os trabalhos mais lucrativos. Às vezes até no fim de semana eu fico olhando se tem algo. É desgastante. Fico pensando que, se eu sair, posso perder dinheiro.
Em janeiro deste ano, uma reportagem da revista americana Time mostrou que, para criar o ChatGPT, a OpenAI contratou trabalhadores terceirizados no Quênia, que ganhavam menos de US$ 2 por hora para “ensinar” o modelo a identificar e evitar a geração de conteúdos tóxicos, incluindo discursos de ódio, violência sexual e todo tipo de crime.
Na época, a OpenIA informou que os funcionários da plataforma que prestou o serviço foram importantes no trabalho de remover dados tóxicos dos conjuntos de informações de treinamento do ChatGPT. A terceirizada afirmou que fornecia apoio psicológico aos trabalhadores expostos a conteúdos violentos.
Nesse caso, eles tinham contratos fixos, mas a oferta de treinar a IA para conteúdo tóxico também acontece no modelo freelancer.
Microtrabalhadores ouvidos pelo GLOBO contam que as tarefas que envolvem exposição à violência costumam conter aviso prévio. O dilema entre aceitar ou não, muitas vezes, passa pelo bolso. É que, nessas plataformas que funcionam como marketplaces de microtrabalho, esse tipo de tarefa tem remuneração mais alta, conta Graper, que passa de quatro a cinco horas por dia trabalhando em duas plataformas.
Uma da funções mais perturbadoras que já exerceu foi analisar 2 mil vídeos de alguns segundos que tinham “todo tipo de coisa, menos estupro e pedofilia”, conta:
— Eu tinha que ver o vídeo, normalmente de 10 segundos, e resumir em uma frase o que tinha lá, de forma bem descritiva — conta o estudante. — A pior imagem que vi foi a de um abatedouro de cachorro. Tinha um monte de cachorro morto no chão e um homem com um bastão. Ele dava um golpe na cabeça de um cachorro. Eu vi praticamente de olho fechado.
Fator humano
O trabalho humano é a chave por trás da “inteligência” de ferramentas como o Bard, chatbot do Google, e o ChatGPT, da OpenAI. Dora Kaufman, professora da Pós-Graduação de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP e autora do livro “Desmistificando a Inteligência Artificial”, explica que a ação humana é fundamental em dois processos do desenvolvimento da IA. O primeiro é chamado de “aprendizado supervisionado”, que consiste em rotular dados.
— Em algum momento alguém teve que escrever, na imagem de cachorro, que aquilo era um cachorro. Isso se chama rotular os dados. Você precisa colocar um rótulo do que é o quê — explica Dora Kaufman. — Esse trabalho é manual. Quando falamos em inteligência artificial, as pessoas não têm noção do que de humano tem por trás desses sistemas.
O segundo processo crucial, particularmente para sistemas de IA generativa que interagem com usuários, como ChatGPT e Bard, é o processo de aprendizagem de software por meio do reforço com feedback humano (RLHF, na sigla em inglês). Cérebros de verdade precisam analisar amostras de respostas geradas pelos sistemas artificiais e pontuar se elas estão corretas ou não.
— Nessas respostas, entram valores humanos que você não tem como colocar no sistema. São trabalhadores braçais, muitas vezes com baixa remuneração, que fazem a classificação e pontuam as respostas dos sistemas — completa a pesquisadora.