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MUNDO

Brics se expande como força antagônica aos EUA e com agenda pela desdolarização

A partir de 1º de janeiro, Irã, Emirados Árabes, Arábia Saudita, Etiópia e Egito integram o clube de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul

Líderes do Brics se cumprimentam em Johannesburgo Líderes do Brics se cumprimentam em Johannesburgo  - Foto: Marco Longari/AFP

Um novo ano se inicia com uma nova fase para o Brics e para o tabuleiro político internacional. A partir de hoje, o grupo — formado originalmente por Brasil, Rússia, Índia e China e, desde 2011, pela África do Sul — terá também Irã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Etiópia e Egito entre seus membros. Com a expansão, o clube de países emergentes passa a representar 27% do PIB mundial e 43% da população do planeta.

A Argentina retirou sua adesão na última sexta. Ainda na campanha presidencial, o presidente ultradireitista Javier Milei declarou que não se alinharia a “comunistas”, termo que então se referia a alguns dos países do Brics. A decisão não surpreendeu Brasília, mas é um revés para o governo brasileiro, que inicialmente foi contra a expansão por temer a diluição de seu poder. Voto vencido quanto à ampliação do grupo, a presença do aliado sul-americano ao menos atendia aos interesses regionais do Brasil e representava uma tentativa de equilibrar as forças internas ante uma liderança natural da China.

Para alguns analistas, a natureza predominantemente econômica na qual o Brics se baseava quando foi fundado deu lugar a uma força antagônica à hegemonia dos Estados Unidos, sobretudo com o acirramento das tensões entre Pequim e Washington nos últimos anos — embora alguns membros do próprio grupo, como Brasil e Índia, tentem afastar tal ideia. Nesse sentido, uma das principais agendas é promover a desdolarização da economia global.

Um dos defensores mais vocais da desdolarização é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que no ano passado criticou a predominância do dólar em mais de uma ocasião. Para Maurício Santoro, cientista político e professor de Relações Internacionais da Uerj, "um mundo com mais opções além do dólar" seria interessante para o Brasil, que tem Pequim como maior parceiro comercial — embora menos de 1% das transações brasileiras sejam feitas em yuan, contra 90% em dólar.

— Se a gente passar a fazer a maior parte do comércio com a China na moeda chinesa, isso vai baratear os custos de transação — afirma Santoro ao Globo, destacando que a manobra também facilitaria a inserção de empresas brasileiras no mercado financeiro chinês. — Para o Brasil, há benefícios econômicos e também políticos dentro da visão do presidente Lula, que quer dar ênfase nas relações com países do Sul Global.

Segundo Daniel Sousa, economista e apresentador do podcast Petit Journal, outra vantagem é o aumento do poder de negociação.
 

— No caso de países como o Brasil e a Índia, que não têm uma ambição de impor as suas moedas como hegemônicas, se o sistema se tornar multipolar, aumenta a capacidade deles de barganha — analisa. — Os americanos chegaram a declarar quando houve a expansão [do Brics] que “isso não nos preocupa”. O que é a maior prova que preocupa, porque se não preocupasse, não falariam nada.

Para Sousa, "a moeda é um dos braços do projeto político hegemônico" americano.

— Ao conseguir emplacar a dolarização, o primeiro benefício é que os EUA não tão sujeitos à flutuação cambial: como tudo é cotado em dólares, os americanos lidam com uma variável a menos de risco — explica o economista.

Além disso, a dolarização concede aos EUA um enorme poder de influência sob a dinâmica do sistema financeiro internacional, determinando quando há mais ou menos dinheiro em circulação. Segundo Sousa, o país ainda se posiciona naturalmente como um dos principais financiadores e emprestadores mundo afora através do Fundo Monetário Internacional (FMI), no qual detém a maioria das cotas.

— Os EUA conseguem influenciar a agenda de outro país porque ele depende dos americanos. E, claro, estar fora dessa agenda quando o dólar é a moeda de referência tem um peso.

Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, o uso da moeda americana como arma política ganhou novos contornos a partir do congelamento das reservas russas em bancos ocidentais e a expulsão do país do principal sistema de pagamento internacional, o Swift. Como efeito, Moscou e seus parceiros precisaram encontrar alternativas para continuar suas operações, o que acabou impulsionando o uso de moedas locais, sobretudo a chinesa.

— A guerra aproximou a China e a Rússia. Por exemplo, as exportações de petróleo para a China feitas pela Rússia são pagas hoje em yuan num sistema paralelo administrado pelo Banco da China — explica Alexandre Costa, ex-consultor da instituição, doutor em Relações Internacionais e secretário da International Political Science Association.

Segundo Santoro, as sanções à Rússia deixaram uma "lição muito amarga" de que não se pode confiar no dólar, motivando uma busca por "outra ferramenta que não esteja sujeita ao poder dos Estados Unidos":

— As lições estão sendo compartilhadas por países como a China. Se daqui a cinco ou dez anos o país entrar numa guerra contra os EUA por causa de Taiwan, Pequim quer evitar que seus ativos em dólar no exterior passem por um confisco semelhante. O mesmo vale para o Irã, que tem um longo histórico de conflitos com o Ocidente.

Ao longo de 2023, o Lula defendeu diversas vezes a criação de uma moeda comum para o comércio exterior. Em visita à Argentina ainda sob o governo de Alberto Fernández, o presidente disse que estudaria a viabilidade de uma moeda para as transações com o país e demais nações sul-americanas, iniciativa que já teria até nome: sur. Depois, Lula sugeriu algo parecido para o comércio entre o Brics. Para especialistas ouvidos pelo Globo, há diversas variáveis que tornam a implementação de uma iniciativa assim improvável.

— Há uma dificuldade operacional enorme. Obviamente, teria que ter um Banco Central, talvez um comum entre os países — avalia Costa. — Você precisaria de uma política macroeconômica ajustada entre os BCs de cada país e entre os seus líderes políticos.

Santoro concorda que é preciso haver uma "convergência das políticas econômicas":

— Se a gente olhar o exemplo da Europa, o caminho que levou até o euro foi muito longo, precisou de décadas de debates e, quando enfim chegaram em um consenso, precisaram assumir uma série de compromissos. Não é algo trivial e depende de um entendimento muito difícil de obter entre países com níveis de desenvolvimento tão diferentes, como é o caso do Brics.

Para Sousa, a aceitação de uma nova moeda comum seria outro desafio. Segundo ele, é mais provável que o yuan assuma o protagonismo com a expansão do Brics, sobretudo porque a moeda é aceita pelo FMI desde 2016. A própria Argentina tem usado recursos de Pequim para quitar a sua dívida no órgão, já que vive uma escassez de dólares.

— O principal desafio para implementar um projeto como esse é convencer os agentes econômicos a aceitarem essa moeda como forma de pagamento, já que ela não estaria circulando nas mãos das pessoas e somente seria utilizada para compensações entre os países envolvidos — pontua.

O fato de Pequim ser o parceiro comercial comum entre todos os países do Brics, mas eles não terem necessariamente fortes relações entre si, é outro fator que impulsiona o yuan, segundo Costa. Para ele, a influência da moeda chinesa cresceu substancialmente nas últimas duas décadas, considerando que, até 2003, o yuan só circulava dentro da China Continental.

Santoro, por outro lado, acredita que o yuan deveria ter um impacto global muito maior se comparado ao peso da China. Segundo ele, o governo chinês ainda impõe uma série de controles à circulação da moeda que tornam muito difícil a sua internacionalização.

Para Santoro, a expansão do Brics ajuda na consolidação de uma nova ordem multipolar, na qual a desdolarização faz parte de uma agenda de reformas geopolíticas. Mas, segundo ele, é preciso algo muito maior para ameaçar a hegemonia do dólar.

— Nos últimos 200 anos, as transformações das moedas globais estiveram ligadas a uma grande guerra ou revolução. Foi assim com a libra esterlina, que virou a moeda de referência depois da vitória britânica sob Napoleão. Para que o dólar virasse o que é hoje, precisou haver o declínio do Império Britânico e a vitória americana nas duas guerras mundiais. Para a ascensão do yuan ou de outra moeda, teria que haver algo comparável.

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