Crise atrapalha luta para conter consumo de alimentos ultraprocessados
A tendência é que esses produtos sejam mais baratos do que alimentos saudáveis, o que dificulta a substituição dos alimentos
Elevar a tributação, regular a publicidade e obrigar a indústria a usar rótulos de advertência são formas de reduzir o consumo de comida ultraprocessada. Contudo, a tendência de que esses produtos sejam mais baratos do que alimentos saudáveis dificulta sua substituição. Ainda mais em tempo de contração da renda e aumento da insegurança alimentar.
Diferentemente de comida fresca ou minimamente processada, ultraprocessados têm valores formados por custos de embalagem, transporte e propaganda. A tecnologia incorporada a esses produtos e a chance de alterar sua composição dão a fabricantes margem para mexer nos preços.
Estudos coordenados por Rafael Claro, do departamento de Nutrição da Escola de Enfermagem da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) mostram que, no longo prazo, ultraprocessados tendem a ficar mais baratos.
A partir do monitoramento de mais de 240 itens entre 1994 e 2017, um dos estudos estimou que, em 2026, uma dieta de alimentos in natura será mais cara que uma com base em ultraprocessados.
A pandemia acelerou a tendência, diz o professor. "Alimentos cujos valores mais cresceram no período são in natura, com exceção do óleo, usado para processá-los. Refrigerante subiu, mas não da forma que a carne in natura."
Segundo Claro, há pouco tempo, para ser obeso era preciso dinheiro. ''Agora, caminhamos no sentido contrário." Para coibir o consumo de ultraprocessados, iniciativas vêm sendo tomadas aqui e no mundo. No Brasil, produtos com alta concentração de açúcar, sódio e gorduras saturadas deverão, a partir de outubro de 2022, apresentar essas informações na frente de suas embalagens. A medida pretende alertar o consumidor sobre alimentos que ultrapassem valores determinados pela Anvisa para esses itens e estimular a indústria a reformular produtos, de maneira a evitar a rotulagem.
Já são bem conhecidos, hoje, os impactos sobre a saúde do consumo de alimentos cujo nível de transformação é tão alto que faz com que percam as características originais. Alexandre Novachi, diretor de assuntos regulatórios da Abia, entidade que reúne as indústrias de alimento, questiona a ligação entre o consumo de certos alimentos e problemas como obesidade, relacionada a fatores genéticos e culturais, como ele afirma.
Novachi destaca o compromisso da indústria com descobertas científicas e acrescenta: "Empresas associadas à Abia se anteciparam à regulamentação da Anvisa de 2019 e já tinham adequado seus produtos para que não tivessem gordura trans industrial. Hoje, o Brasil é livre desse tipo de gordura."
Acordos entre indústria e Ministério da Saúde preveem a redução da quantidade de sódio e açúcar adicionada aos alimentos. Para 2020, o compromisso era retirar 28 mil toneladas de sódio dos produtos considerando a estimativa de consumo para o ano. Análises parciais indicam, segundo Novachi, o cumprimento da meta. Quanto ao açúcar, está prevista a redução gradual de 145 mil toneladas até 2022.
Carlos Augusto Monteiro, que coordena o Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde), da USP, cita estudos em diversos países que isolaram os efeitos de outras variáveis, como prática de atividades físicas, consumo de cigarro e álcool, e mostraram a relação entre alimentação com ultraprocessados e desenvolvimento de obesidade, diabetes e hipertensão.
O problema, para Monteiro, é que ultraprocessados são feitos para consumo excessivo. ''Sua fórmula é manipulada de maneira a encontrar um tipo de paladar, aroma e textura que faça a pessoa comer sem parar. Refrigerante não é feito para saciar a sede. A pessoa quer continuar tomando."
Daí a urgência de políticas públicas. Mas o país caminha lentamente neste tema.
Mesmo a rotulagem, com início no ano que vem, é considerada pouco rigorosa. "Os limites definidos pela Anvisa são mais altos que os recomendados pela Organização Panamericana de Saúde, muitos alimentos que deveriam ter a advertência não vão recebê-la", diz Ana Paula Bortoletto, consultora do Idec, entidade de defesa do consumidor. Ela critica o fato de a rotulagem brasileira deixar de fora adoçantes, por exemplo.
No campo fiscal, a situação é pior. A despeito de projetos que tramitam no Congresso para aumentar tributos sobre bebidas adoçadas, não há imposto específico para ultraprocessados no Brasil. Ao contrário: refrigerantes produzidos na Zona Franca de Manaus têm subsídio sob a forma de créditos tributários.
Países da América Latina estão mais adiantados. O Chile aprovou, junto com a rotulagem, restrição à publicidade e à venda de ultraprocessados nas escolas. O que, diz Bortoletto, potencializou o impacto da medida. "Devemos nos inspirar em países que adotaram abordagem mais completa."