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Comércio

Desigualdade digital aprofunda efeito do isolamento social no comércio do Nordeste

Lojas físicas ainda são carro-chefe nas vendas da região; redução no valor do auxílio preocupa

Clóvis Rolim Neto, vice-presidente da rede Casa Pio; com as restrições da pandemia, clientes não conseguem pagar o carnê da loja, que representa 50% da receita -essClóvis Rolim Neto, vice-presidente da rede Casa Pio; com as restrições da pandemia, clientes não conseguem pagar o carnê da loja, que representa 50% da receita -ess - Foto: Deivyson Teixeira/Folhapress

Uma associação de desigualdade no acesso à internet, falta de sincronia no isolamento social e lentidão do governo federal em reeditar os pacotes de socorro a trabalhadores informais impõe desafios adicionais para as redes de varejo no Nordeste na fase mais crítica da pandemia.

O efeito da disparidade digital, por exemplo, está na resiliência da Casa Pio, rede de calçados que tem 45 lojas nos estados do Ceará, Pernambuco e Paraíba.

Enquanto grandes varejistas nacionais fortalecem as suas plataformas e se adaptam ao ecommerce desde a primeira onda do coronavírus, a Casa Pio, que depende de carnês, não vende cada vez que fecha as portas e até ficou sem receber a metade dos pagamentos dos clientes durante seis meses.

Clóvis Rolim Neto, vice-presidente da rede, conta que os carnês são a melhor alternativa para atender as classes B e, principalmente, C e D. A empresa atua com um crediário próprio. Feito sem intermédio de bancos, os carnês sempre foram pagos diretamente nas lojas. A rede também trabalha com cartão de crédito, mas o carnê ainda representa 50% da receita.

No passado, a dependência do caixa em relação a essa modalidade era ainda maior -chegou a representar 80%.
Entre março e junho, as lojas ficaram fechadas por 70 dias. O empresário tem 12 milhões de clientes ativos nos três estados da região e afirma que não cobrou os juros. Os clientes pagaram tudo assim que as lojas foram reabertas.

"Março é o dezembro do nosso financeiro, é quando recebemos os pagamentos das compras de Natal. Vendemos calçados com pagamento para 60, 90, 120 dias, e com as lojas fechadas em março o nosso cliente não tinha onde fazer o pagamento. Quem comprou em dezembro, ainda não tinha pago nem a primeira parcela no início de junho, quando o comércio reabriu", afirma.

Para mitigar os impactos do lockdown e do toque de recolher nos estados onde atua, há duas semanas a Casa Pio passou a trabalhar com boleto bancário enviado aos clientes por email. Por causa dos novos decretos regionais, a rede ficará com as portas fechadas no Ceará. Na Paraíba e em Pernambuco, trabalhará em horário reduzido de segunda a sexta e não funcionará aos fins de semana.

Clóvis conta que enviar o boleto ajuda a manter o negócio de pé, mas por outro lado reduz o fluxo de novas compras dos clientes, que ainda são muito atraídos pelas vitrines. "Cada vez que o nosso cliente vai pagar uma prestação na loja, ele compra um produto novo. Sempre foi assim a nossa estratégia. Com o boleto, esse fluxo acaba. No isolamento, o cliente vai menos à loja, não tem amigo secreto, Carnaval, o sapato dura mais", afirma.

O empresário diz que estão mudando uma tradição de 94 anos e enviando boletos aos clientes para não ficarem sem receber. "Como a gente diz aqui no Nordeste, a água está toldada, está muito escura, e a volta será muito lenta".

O menor acesso à internet na região também é um entrave para o comércio local. Em um levantamento do Cetic.br (Centro Regional para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação), que mostra o acesso de domicílios à internet por região, o Nordeste é o lanterninha: 65% das residências têm acesso à rede, contra 75% no Sudeste, 73% no Sul, 72% no Norte e 70% Centro-Oeste.

Na relação de usuários que fizeram ao menos um acesso nos últimos três meses, a região também fica para trás. Foram 77%, atrás de Sul (78%), Sudeste (80%), Norte (80) e Centro-Oeste (83%).
Essa realidade dificulta a digitalização dos negócios, como mostra Alexandre Cordeiro, sócio da rede de eletrodomésticos Solar Magazine, que tem 44 lojas no Ceará e no Rio Grande do Norte.

Na pandemia, a rede começou a vender pelo WhatsApp, contratou profissionais para implantar um ecommerce, mas ele diz que o novo canal de vendas ainda está engatinhando, o que causa apreensão com o acirramento da pandemia.

Cordeiro conta que 98% das vendas ainda são realizadas em lojas físicas. Com as restrições na Grande Fortaleza em março, a rede está com 15 lojas fechadas, e ele teme que esse número aumente nos próximos dias.

"As lojas da Grande Fortaleza representam 40% do meu faturamento. Imagina o impacto que estou tendo. O interior, que não estava entrando em lockdown, está começando [a fechar] a entrar agora. Isso começa a deixar gente mais preocupado", afirma.

Segundo Cordeiro, o abre e fecha tem sido cruel com muitos. A rede, por exemplo, fez uma inauguração em Tabuleiro do Norte, no interior do Ceará, oferecendo produtos a preços abaixo da média porque teve uma oportunidade na aquisição do local.

"Algumas pessoas tiveram que entregar o espaço e a gente comprou", diz. "Infelizmente, muitos empresários daqui estão ficando pelo meio do caminho."

A volta do auxílio emergencial, ele avalia, não vai aliviar esse cenário. "O auxílio ajudou muito, fez circular moeda dentro do mercado. Mas acho que esse novo auxílio, por ter um valor menor, não vai ter o mesmo efeito e as pessoas vão ter que se preocupar em comprar comida", afirma.

Em 2020, a primeira rodada do auxílio emergencial liberou parcelas de R$ 600, inclusíve para beneficiários do Bolsa Família, o que teve um grande impacto na recuperação econômica no Nordeste. O economista Thiago Moraes Moreira, consultor em planejamento e professor da pós-graduação do Ibmec, fez um estudo que sinaliza o resultado.

No levantamento, ele desagregou a recuperação do comércio em dois subgrupos. A expansão do comércio varejista, de abril a agosto, ficou em 51% no Norte e Nordeste. No Centro-Sul-Sudeste, o avanço foi menor, de 27%. A diferença foi atribuída aos efeitos do auxílio sobre a renda dos mais pobres.

Foram especialmente favorecidos os segmentos voltados ao lar, como eletrodomésticos, decoração e material de construção, que agora sentem a falta do benefício e projetam um ano pior com a queda do valor do auxílio. O governo definiu que serão liberadas quatro parcelas de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375, a depender do perfil familiar. Serão atendidas 45,6 milhões de pessoas, 22,6 milhões a menos dos beneficiados na primeira fase.

José Lucena é dono da rede de material de construção Comjol, no Rio Grande do Norte. No ano passado, as vendas registraram crescimento de 29% em relação a 2019, puxadas, principalmente, por pequenas reformas.

"Para material de construção, março do ano passado foi péssimo, mas, entre o final de abril e maio, a gente começou a reverter em V essa queda com pequenas reformas", afirma. "O auxílio ajudou muito, pois a quantidade de dinheiro que começou a circular dentro das lojas foi grande."

Com os ganhos, Lucena ampliou o quadro de funcionários, passou a atuar no ecommerce e iniciou o ano otimista com a previsão de duas inaugurações no interior -uma para 2021 e outra para 2022. "A gente sustentou empregos com os programas do governo e no final do ano tínhamos crescido mais 10% em quantidade de funcionários", disse.

No entanto, o cenário de crescimento não é mais o mesmo, uma vez que o valor do auxílio caiu. O empresário afirma que a indefinição sobre o lockdown e o aumento do índice de transmissibilidade no estado, agora, mobilizam mais sua atenção do que uma menor na injeção de recursos da segunda rodada do auxílio emergencial.

"O que me preocupa é esse toque de recolher confuso no Rio Grande do Norte", afirma. "No ano passado, fechamos muito bem, esse ano começou melhor ainda, mas desde 1º de março começaram a sair decretos de fechamentos na capital e no estado, e o movimento já teve uma retração muito grande".

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