Dia da Água: Da Mesopotâmia à Ucrânia, abastecimento é causa e arma de guerra
População civil é sempre a maior vítima dos conflitos que envolvem recursos hídricos, embora acesso a um bem essencial seja garantido por Convenções de Genebra
Mesopotâmia, 4.500 anos atrás. O rei da cidade-Estado de Lagash ordena o desvio de água para causar escassez na rival Umma. Estados Unidos, 1777. Britânicos atacam o sistema de água de Nova York no conflito que levou à independência americana. Ucrânia, 2022. Soldados do país abrem represa para provocar um alagamento e atrapalhar o avanço dos russos invasores em direção à capital Kiev.
Há milênios, recursos hídricos geram conflitos, dada sua importância vital. Mudanças climáticas e seus efeitos sobre mananciais tendem a acirrar disputas.
A Cronologia dos Conflitos pela Água, mantida pelo Instituto Pacific, um think tank californiano, contabiliza 1,3 mil atritos relacionados a recursos hídricos desde a guerra mesopotâmica. O banco de dados mais completo do planeta sobre o tema ainda nem foi atualizado para incluir incidentes da guerra na Ucrânia.
O alagamento perto de Kiev é apenas um exemplo de como a água tem papel-chave nessa guerra. Segundo um estudo recém-publicado na revista Nature Sustainability, só nos três primeiros meses do conflito, foram 64 casos de impacto no setor hídrico — 49 concretizados e outros 15 em potencial.
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Quando a Rússia ocupou ilegalmente a Crimeia, em 2014, a Ucrânia construiu uma represa no Canal do Norte da península para cortar o fluxo de água para os invasores. Uma das primeiras ações russas após a eclosão da guerra, em fevereiro do ano passado, foi implodi-la.
Convenção garante acesso
Ataques contra sistemas de distribuição de água da Ucrânia também têm sido frequentes nos 13 meses de conflito, penalizando ainda mais a população.
"Ataques contra infraestruturas hídricas civis são uma violação clara das convenções de Genebra, que proíbem ataque contra infraestruturas civis. Mas a comunidade internacional não é tão boa em julgar crimes de guerra" diz Peter Gleick, cofundador do Instituto Pacific e coautor de estudo sobre a guerra na Ucrânia.
As convenções de Genebra ganharam forma após a Segunda Guerra Mundial, definindo salvaguardas humanitárias em conflitos. Deve haver distinção entre “objetos civis e objetos militares”, e ataques contra o primeiro grupo são proibidos. Nada disso, no entanto, tem protegido o acesso à água em regiões conflagradas.
A violência envolvendo recursos hídricos não se resume a tempos extraordinários como a guerra: o banco de dados do instituto indica agravamento das disputas nos últimos 20 anos. Em todo o século XX, houve 181 registros. Na primeira década deste século, foram 220. Ente 2010 e 2019, a soma chegou a 629.
A cronologia divide os episódios em três categorias não excludentes. Os que usam a água como arma de guerra têm como principal exemplo o ataque a infraestruturas hídricas.
Há também uma classificação em que a água é o gatilho para embates e outra em que o acesso a ela é prejudicado por um conflito. A ocorrência dos últimos dois tipos tornou-se mais frequente nos anos recentes.
A piora é relacionada principalmente às guerras na Síria e no Iêmen e à ascensão do Estado Islâmico no Oriente Médio. Desde 2000, um quarto dos conflitos relacionados à água foram registrados no Oriente Médio, no Sul da Ásia ou na África Subsaariana. São regiões que já sofrem com escassez de água e que tendem a ser mais afetadas pelas mudanças climáticas.
"Sabemos que o clima está mudando, que os humanos são responsáveis e que há impactos significativos nos recursos hídricos" diz Gleick. "Há piora na gravidade das secas, no impacto das enchentes e das tensões que dizem respeito à demanda pela água."