AFROTURISMO

Embratur quer usar herança negra do Brasil para atrair turistas e tirar atraso nessa área

Governo quer estimular circuitos turísticos no país voltados à cultura negra que podem gerar negócios

 Cais do Valongo Cais do Valongo - Foto: Oscar Liberal/Iphan

O Brasil é o país que mais recebeu pessoas negras escravizadas nas Américas. Ao longo de 388 anos, cerca de 4,8 milhões de africanos foram trazidos para engrossar a mão de obra forçada em que se baseavam as atividades econômicas por aqui. Apesar do papel central da escravidão na História do Brasil, os vestígios da violência praticada e das lutas contra ela são historicamente negligenciados.

Ainda assim, essa memória e a riqueza cultural gerada pela presença negra no Brasil podem ser encontrados em diversas regiões do país. Espaços de resistência, como quilombos, e símbolos da desumanização, como antigas senzalas em fazendas e cidades históricas, têm natural vocação turística, mas só agora o Brasil começa a enxergar o potencial econômico do afroturismo.

O termo se refere aos serviços turísticos em torno da história e da cultura negra no mundo. Esse movimento já é antigo nos EUA, que tem em comum com o Brasil o passado escravocrata, mas pela primeira vez, neste ano, entrou no radar do governo brasileiro.

O presidente da Embratur, Marcelo Freixo, anunciou a ideia de um plano nacional para incentivar o afroturismo, dando visibilidade a destinos e negócios afrocentrados.

O afroturismo também engloba a formação de um ambiente capaz de superar o racismo estrutural e fazer viajantes negros se sentirem acolhidos e contemplados em suas experiências turísticas, incluindo o consumo de pacotes para destinos na África ou outros países cujas culturas foram marcadas pela diáspora africana.

Para Rafael Moraes, turismólogo do Instituto Pretos Novos (IPN), no Rio, a melhor aplicação para o termo é designar roteiros afrocentrados conduzidos por pessoas pretas especializadas:

"No IPN, utilizamos mais o termo 'turismo de memória', pois acreditamos que o afroturismo deva ser feito por agências majoritariamente formadas por pessoas pretas. Como aqui trabalhamos com voluntários, não podemos garantir que todos os roteiros terão esses profissionais, mas isso não impede que nossos serviços preservem a história preta e respeitem essa cultura."

Potencial desperdiçado
O IPN fica perto Cais do Valongo, que foi um dos principais pontos de desembarque de escravizados no Brasil e só foi redescoberto em 2011, nas escavações das obras do Porto Maravilha. A região no Centro do Rio também é conhecida como Pequena África, por concentrar vários sítios ligados à ancestralidade negra, como o Cemitério dos Pretos Novos (que recebia escravizados mortos durante a travessia oceânica), assentamentos de negros libertos ou envolvidos em lutas de resistência e berços de manifestações culturais como o samba.

Criado em 2005, nove anos depois do achado arqueológico do cemitério, o IPN é uma organização sem fins lucrativos para proteger o sítio em parceria com a UFRJ. Acabou virando ponto de partida de quem quer explorar a região, mas não encontra estruturas governamentais como museus, sinalização e roteiros. É um exemplo do atraso do Brasil na área.

"Criamos o Circuito da Herança-Africana, que promove turismo na Pequena África, e nos tornamos referência neste tipo de roteiro" diz Moraes.

Somente em maio deste ano, o BNDES e o Ministério da Igualdade Racial anunciaram um edital de mais de R$ 10 milhões para financiar a construção de um museu dedicado à herança africana no Cais do Valongo. Emily Borges, turismóloga e sócia da agência Etnias, no Rio, conta que a região começou a ser valorizada em 2011, mas ainda assim não é vista como um potencial econômico pelo turismo:

"A questão do negro no Brasil é sempre secundarizada. Há esse mito de democracia racial, que acomoda as instituições para não lidarem profundamente com nossa existência e memória. Se até no ensino básico precisamos de lei para obrigar aulas de história afro-brasileira, imagina no turismo."

Chance de empreender
Além de atrair visitantes, o afroturismo abre oportunidades de empreendedorismo para pretos e pardos que vivem em áreas com atrativos ou estão envolvidos em atividades de raiz africana, da capoeira à culinária, das religiões ao carnaval.

Por isso Freixo diz querer usar o afroturismo como principal eixo da Embratur, transformando o país “numa referência mundial” de afroturismo. Ele caracteriza a tendência como “assustadoramente nova”, mas admite que o Brasil está atrasado.

"É assustador que, num país onde a história da cultura negra é tão importante, não existisse essa relação com o turismo, que tanto movimenta a economia. Além disso, a iniciativa é uma forma de reparação histórica, para tentar compensar todos os anos de apagamento cultural" diz Freixo, em entrevista ao Globo, sem revelar detalhes ou investimentos do plano. "Estamos atrasados, porque toda luta contra o racismo é uma luta contra o tempo perdido".

Ainda há pouco de concreto na ação da Embratur. Uma das medidas já lançadas pela agência está a criação, na plataforma de turismo internacional TripAdvisor, do primeiro hub de conteúdo sobre afroturismo. Uma parceria com o Iphan vai mapear todos os patrimônios que podem ser relacionados a essa modalidade turística.

Na outra ponta, a Embratur tem realizado workshops de capacitação para quem já explora negócios na área, vai criar um laboratório de aceleração de startups de turismo e estimula a produção de conteúdos audiovisuais que contemplem cultura e história afrobrasileira.

Planos para Palmares
No nível dos estados, Alagoas também vê com bons olhos as oportunidades do afroturismo, afinal abriga o Quilombo dos Palmares, cuja história foi associada ao Dia da Consciência Negra. O plano ali é atrair o foco do país na mesma data a partir do próximo ano.

"Queremos que seja um importante evento para Alagoas, onde viveu Zumbi dos Palmares. Em diversas frentes, estamos realizando ações transversais para manter tradições da população preta no estado. Criamos o programa Escola do Turismo, que já capacitou gratuitamente 11 mil alagoanos, prioritariamente, mulheres, negros e pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica" diz a secretária de Turismo de Alagoas, Bárbara Braga.

Estrelas em Salvador
Salvador, a capital mais negra do país, também desponta naturalmente quando se fala em turismo associado à herança africana. Recentemente abrigou o Festival Liberatum, de afrocultura, que atraiu turistas e até estrelas internacionais como as americanas Viola Davis e Angela Bassett.

A agente de turismo de base comunitária Manoela Ramos, autora do livro “Confissões de viajante (sem grana)”, roda o país há quatro anos pelo menos e avalia que o afroturismo já estimula pessoas pretas como ela a cair na estrada:

"Quando viajamos e temos contato com a história, temos uma assimilação muito maior que uma pesquisa mais distante. Para as pessoas pretas, passa por uma construção de identidade e fortalecimento de cultura e raízes. Além disso, traz essa perspectiva de que pessoas pretas podem viajar, que esse também é um lugar para a gente. Por questões financeiras e situações de racismo, muitos deixam de viajar. Vejo o afroturismo como importante ferramenta para mudar isso."

Exemplo americano
A principal inspiração para o Brasil na área do afroturismo deve ser os EUA. Além de iniciativas como a abertura, em 2016, do Museu Nacional de História e Cultura Afro-americana, em Washington — que já ultrapassou 10 milhões de visitantes — os americanos, principalmente os de ascendência negra, são os mais interessados em roteiros afrocentrados mundo afora, observa Emily.

Um negócio nessa vertente por lá é o Nomadness Travel Tribe, também chamado de “Livro Verde digital”, em referência ao “Green Book”, guia que trazia os poucos hotéis, restaurantes e bares que recebiam afroamericanos na época da segregação racial nos EUA, que foi até a década de 1960. A empresa foi criada em 2011 por Evita Robinson para reunir viajantes negros interessados em trocar dicas e experiências de viagem pelo mundo.

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