BRASIL

Projeto que permite um imóvel como garantia de dívidas pode virar "pesadelo" para famílias pobres

Especialistas alertam que a criação do novo marco de garantias, em tramitação no Senado, pode colocar em risco patrimônio moradia em vez de abrir acesso ao crédito

Cédulas brasileirasCédulas brasileiras - Foto: Joel santana por Pixabay

Aprovado, na última quarta-feira, pela Câmara dos Deputados, o projeto de lei que cria um novo marco de garantias no país pode transformar em pesadelo o que seria um novo caminho para melhorar o acesso ao crédito ao consumidor, principalmente o de baixa renda.

O alerta foi dado por especialistas ouvidos pelo Globo, que demonstraram preocupação com a possibilidade de um um único bem imóvel familiar passar a ser usado como garantia em operações de financiamentos diferentes, ou seja, em dois ou mais empréstimos.

O projeto foi apresentado pelo Executivo em novembro do ano passado e ainda precisa passar pelo Senado, antes de ir a sanção presidencial. Para a coordenadora do programa de serviços financeiros do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ione Amorim, se aprovado, o texto afetará diretamente a Lei da Impenhorabilidade, que determina que uma família não pode dar em garantia o seu único bem imóvel, senão para o seu próprio financiamento.

— Isso significa que o bem imóvel, que não poderia ser tomado em nenhuma circunstância, salvo no inadimplemento do financiamento imobiliário, passa a servir de garantia na obtenção de outras modalidades de crédito, como o crédito pessoal, muitas vezes sem destinação específica, solicitado apenas para pagar outras dívidas bancárias. A proposta visa atender aos interesses das instituições financeiras, que buscam garantias para a expansão de crédito no país, vulnerabilizando ainda mais os consumidores — afirmou.
 

Ela enfatizou que, quando o bem é dado em garantia em mais uma operação de crédito, aumenta o risco para o consumidor, que tem maiores chances de perder a sua casa.

Do ponto de vista econômico, completou Ione Amorim, a medida é bastante preocupante, uma vez que a crise financeira internacional de 2008 aconteceu justamente por essa razão: cidadãos americanos tomavam créditos sucessivos concedendo o mesmo imóvel como garantia, criando uma valorização irreal.

Outro ponto destacado pela representante do Idec diz respeito à possibilidade de renegociação coletiva de dívidas, prevista pela Lei do Superendividamento, em vigor há quase um ano. Segundo ela, tal previsão não é válida para os contratos de crédito com garantias reais, como é o caso dos bens imóveis.

— Ou seja, o consumidor que contrair um empréstimo nesses moldes tem menos chances de renegociar a dívida, aumentando a possibilidade de superendividamento — concluiu.

O texto aprovado na Câmara prevê a criação de um serviço de gestão especializada por meio das Instituições Gestoras de Garantia (IGGs), a serem regulamentadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Caberá às IGGs avaliar o valor das garantias dadas e, com base nesse valor, as instituições financeiras poderão definir um montante adequado de crédito a ser tomado pelo interessado.

Para o especialista em Direito do Seguro e sócio do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia, Vitor Boaventura, o marco das garantias é uma falsa promessa de melhoria das condições de acesso ao crédito para a população. Segundo ele, o Congresso Nacional aceita há anos e passivamente a cobrança de juros exorbitantes da população vulnerável e de menor renda.

— Lamentavelmente, o que se criou foi mais um instrumento que beneficia as instituições financeiras em detrimento da população que, pressionada pela redução na renda e a inexistência de políticas efetivas acesso ao crédito, se vê cada vez mais superendividada para sobreviver. Ao permitir que um imóvel seja oferecido como garantia a mais de uma instituição financeira, o projeto ameaça o equilíbrio sistêmico, o que poderia fragilizar ainda mais a combalida economia brasileira —afirmou.

Advogado e ex-diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça, Ricardo Morishita avalia que o acesso ao crédito é importante, assim como medidas que possam reduzir os juros. No entanto, acredita que o texto pode acelerar o endividamento no país.

—Pode ser uma medida que acabe acelerando a situação de superendividado, comprometendo ainda mais seus direitos. Caminhamos para transformar o direito à moradia em uma relação meramente de obrigações — disse Morishita.

Coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Eduardo Chow defende a garantia da impenhorabilidade do bem de família. Ele argumenta que esta é uma forma de proteger o mínimo existencial da pessoa e a dignidade da vida familiar.

—Em um país subdesenvolvido e empobrecido, vilipendiar direitos mínimos dos mais carentes em favor dos mais ricos e poderosos, como os bancos, não parece ser uma forma adequada de avançarmos em direção à redução das desigualdades abissais em nosso país.

Chow enfatizou que o aumento de endividados e superendividados no Brasil, com os atuais índices de inadimplência, induzem inadequadamente a “soluções imediatistas”, como forma de se viabilizar o aumento do crédito e a possível redução de juros.

Citou como exemplo a autorização de empréstimos consignados em auxílios assistenciais de pessoas miseráveis e, agora, a tentativa de acabar com a impenhorabilidade do bem de família.

— A longo prazo, a injustiça de decisões como essas acabam por penalizar somente os mais miseráveis de nossa sociedade, que perderão tudo o que possuem hoje para sobreviver em prol de um suposto juro reduzido que não irá beneficiá-los.

Conforme a líder do PSOL na Câmara, Sâmia Bomfim, o projeto muda o mercado de crédito brasileiro, com implicações econômicas e sociais profundas. Apesar dessa complexidade , foi aprovado em regime de urgência, sem o necessário debate técnico e democrático nas comissões da Casa.

— Atualmente, 77% das famílias estão endividadas por conta da crise econômica e das altas taxas de juros cobradas no Brasil. Além disso, a construção do projeto implica em grande risco de criação de bolhas financeiras como a que ocorreu em 2008 nos EUA. Pior, quando a bolha estourar, teremos também uma tragédia social de grandes proporções com milhões de famílias perdendo seu único teto — afirmou.

Posição do Ministério da Economia

O Ministério da Economia esclareceu que a situação do bem de família não é alterada pelo projeto: hoje, o bem já é penhorável se oferecido pelo casal ou entidade familiar. Em nota, o órgão enfatizou que o problema está em esses conceitos não serem bem definidos na lei atual, o que causa insegurança jurídica:

“O PL [projeto de lei] apenas retira esses termos para dar clareza. Assim, por exemplo, mitiga o risco de aparecer um terceiro primo na hora da execução alegando ser da entidade familiar do casal que deu o bem em garantia, impedindo a execução. Ou seja, apenas esclarece para evitar um tipo de fraude. Assim, quem efetivamente ofereceu o bem em garantia mantém a impenhorabilidade daquele bem, por ser efetivamente bem de família”.

Ao apresentar o projeto, o governo argumentou que o objetivo é tornar o mercado de crédito mais eficiente para todos os agentes. Isso se daria aumentando a oferta e melhorando as condições de crédito.

Advogado do setor imobiliário, Hamilton Quirino pondera que o projeto traz uma nova linha de crédito para as pessoas mais necessitadas. Ele destacou como positiva a possibilidade de se tomar um segundo ou terceiro empréstimo com o mesmo imóvel, o que hoje não é possível.

—Em linhas gerais, é uma ampliação das linhas de crédito das pessoas mais carentes, embora haja um lado político, em um ano eleitoral — disse.

Em sua avaliação, não se trata do fim da impenhorabilidade. Destacou que esse dispositivo já conta com uma legislação própria e específica, protegendo o bem de família salvo quando o próprio bem, ainda que único, constitua garantia da compra do imóvel.

João Guilherme Dal Fabbro, sócio da Cascione Pulino Boulos Advogados e especialista em Responsabilidade Civil pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas,disse que o projeto de lei permite que se penhore o único bem familiar, porque altera o artigo 3º da Lei 8.009/90, determina as exceções da impenhorabilidade do bem de família.

Por outro lado, ele concorda com o argumento de que o objetivo da proposta é tornar mais seguro e previsível o sistema de garantias e pode ajudar a diminuir os juros.

— Juros sobem e descem em razão de uma variedade de fatores macro e microeconômicos, mas, no campo estritamente jurídico, quanto maior a certeza da satisfação do crédito, menor serão os juros cobrados por ele — afirmou, acrescentando que a melhora e a modernização do arcabouço regulatório tornará mais fácil para o Brasil atrair investimentos estrangeiros.

Sócio da Costa Marfori Advogados, doutor e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Kristian Rodrigo Pscheidt destacou que o projeto avança sobre seis temas diferentes: o serviço de gestão especializada de garantias; o aprimoramento das regras de garantias; o resgate antecipado de Letra Financeira; a transferência de valores das contas únicas e específicas do Fundeb; a exclusão do monopólio da CEF em relação aos penhores civis; e a alteração da composição do Conselho Nacional de Seguros Privados.

Ele também considera que o projeto muda a lei da impenhorabilidade. A penhora passaria a ser permitida em qualquer situação na qual o imóvel foi dado como garantia real.

— Hoje, a redação sinaliza que o bem de família pode ser penhorado em caso de “execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”. A nova redação sinaliza que essa penhora poderá ocorrer para a “excussão de imóvel como garantia real, independentemente da obrigação garantida ou da destinação dos recursos obtidos, mesmo quando a dívida for de terceiro”.

Segundo o especialista, serão criados novos meios de cobrança, e a proteção atual ao bem de família vai diminuir. Porém, se o crédito é concedido com maior probabilidade de retorno e menor despesa para eventual cobrança, o custo do dinheiro cai e, por tabela, a taxa de juros.

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