Reforma tributária deve ter apenas uma fase para não queimar capital político, diz especialista
Para Rita de la Feria, chamada de 'padroeira da reforma tributária' por colegas, narrativa de justiça social deve ser usada para vencer resistências
O Brasil deve fazer sua reforma tributária em uma única fase, pois a perda de capital político costuma impedir a execução de mudanças em etapas. O governo não deve ceder às pressões por tarifas reduzidas para certos produtos, pois depois é muito improvável revertê-las. E é fundamental uma narrativa de justiça social para que a reforma seja aceita pela população.
Essas são as recomendações de Rita de la Feria, professora de Direito Fiscal da Universidade de Leeds, chamada por especialistas brasileiros de "padroeira da reforma tributária". Rita prestou assessoria em política tributária e design de IVA (Imposto sobre Valor Agregado) em países como Portugal, Timor Leste, São Tomé e Príncipe e Angola, e tem participado ativamente do debate sobre a reforma tributária no Brasil.
Os conselhos da especialista portuguesa vêm em momento estratégico, já que é esperada para a tarde de hoje a apresentação da proposta de reforma tributária do governo. A expectativa é que de a primeira etapa a ser apresentada pelo governo seja a unificação da PIS e da Cofins, impostos sob bens e serviços federais, com uma alíquota única de 12%.
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"Façam tudo de uma vez, esse discurso de fazemos um bocadinho agora e outro bocadinho depois significa que há perda de capital político com a primeira fase da reforma e depois não há capital político para a segunda fase", afirmou, durante debate realizado pela FGV.
Outro ponto importante, segundo a especialista, é a narrativa. "Narrativa é fundamental, não vale a pena falar de restrições à concorrência, ganhos de eficiência. A narrativa política tem que ser a mesma de justiça social utilizada pelos grupos de interesse", disse Rita. Segundo ela, o discurso deve ser de que o Brasil precisa de uma reforma porque precisa fazer novas escolas, novos hospitais.
Por fim, a professora portuguesa diz que não se deve ceder à pressão de grupos de interesse por tarifas reduzidas para determinados produtos. "A pressão é sempre para aumentar o número de produtos sujeitos à alíquota reduzida, ou seja, se você começa mal, não tem a possibilidade nenhuma de melhorar. Ou faz bem a princípio, ou não faz", afirmou.
Segundo ela, ideias como começar com três alíquotas, por exemplo, para depois unificar o IVA em apenas uma alíquota não funcionam. "O que você faz agora, não se livra mais depois."
Em sua apresentação, Rita lembrou que o uso de tarifas reduzidas para compensar a regressividade de uma alíquota única sobre bens e serviços foi uma solução antiga, adotada principalmente pelos países da Europa, que têm modelos de IVA defasados com relação aos princípios mais modernos desse tipo de tributação.
Nos sistemas mais modernos, disse a especialista, a regressividade do sistema é compensada através de transferências diretas à população de baixa renda. Esse deve ser o modelo que será proposto pelo governo brasileiro, com o fim da desoneração da cesta básica sendo compensado por um valor adicional pago aos beneficiários do programa Bolsa Família a título de compensação.
Rita reconheceu, porém, que esse modelo costuma gerar resistências. "Há uma preferência pelo status quo, preferimos as coisas que já conhecemos. Mesmo o sistema sendo ruim, pelo menos já sabemos como funciona", afirma. "Temos medo da política pública de dois passos, de primeiro tiramos e depois damos, as pessoas têm aversão a isso."
Melina Rocha, professora da FGV Direito, lembrou do caso da reforma tributária canadense, em que o governo insistiu em uma alíquota única, com uma contrapartida de devolver créditos por meio do Imposto de Renda às famílias de baixa renda.
"Com a pressão popular, na última hora, o governo incluiu uma desoneração sobre alimentos e alguns outros produtos. Os técnicos tiveram que correr para refazer a proposta e os cálculos da alíquota. No final, o governo cedeu e temos hoje a desoneração de alimentos e o crédito à população de baixa renda. Assim, há dois sistemas de desoneração ao mesmo tempo", citou Melina, como um exemplo problemático de quando um governo cede a pressões de grupos de interesse.
Segundo Isaías Coelho, coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV Direito, a proposta que deve ser apresentada hoje pelo governo, de um IVA federal, que depois deverá ser complementado por um IVA estadual, não é o ideal.
Conforme o especialista, uma unificação de impostos em nível nacional, como nas propostas de reforma em tramitação na Câmara e no Senado seria mais desejável.
"Parece que estamos longe de atingir esse objetivo e caminhando na direção do que aconteceu no Canadá de um IVA dual, com União tendo seu IVA e Estados, outro IVA", disse Coelho. Conforme o especialista, a unificação de impostos em nível federal é mais fácil de ser adotada porque requer apenas legislação ordinária, sem mudança na Constituição e nem lei complementar, o que exigiria maioria qualificada nas duas casas do Congresso.
Ainda conforme Coelho, há um clamor por mudanças na tributação de renda, como forma de aumentar a progressividade do sistema tributário, mas essa discussão deve ficar para um segundo momento. "É uma discussão importante, mas certamente o mundo não foi feito em um só dia, nem a reforma tributária será completada rapidamente, temos que começar de algum lugar", afirmou.