Como Clarice se colocaria em 2020? Ela estaria perturbada
"Nesse nosso tempo, creio que ela teria um olhar solidário", opina Teresa Montero, estúdiosa e biógrafa de Clarice Lispector
“Como se houvesse para cada um, em algum momento da vida, a anunciação de que há uma missão a cumprir”. E pensar que esse ‘alerta’ de Clarice, lá pelos idos anos de 1960, segue em evidência em um atípico 2020 cujo prognóstico reforça que a “missão não é leve: cada homem é responsável pelo mundo inteiro”.
Por que tal qual o universo da imensidão atemporal, intrínseca aos escritos de Clarice Lispector – das prosas, poesias e contos às crônicas, cartas e romances – à tona em seu centenário advêm os confrontos cotidianos (e necessários) que pautaram sua literatura (provocativa).
As aspas acima, foram extraídas de uma das crônicas da ucraniana-pernambucana, “Anunciação”, enviada ao Jornal do Brasil nos ares natalinos de 1968.
“Como ela se colocaria no mundo em que estamos vivendo? Ela estaria perturbada. Os seres humanos não se entendem mesmo com tudo que já passamos e estamos passando. Tem parte da população que adere e outra ignora, vive como quer viver, sem o mínimo de empatia. Clarice era solidária”, enfatiza Teresa Montero, estudiosa e biógrafa da escritora em “Eu Sou uma Pergunta: uma biografia de Clarice Lispector” (Rocco, 1999).
A “Anunciação” de Clarice – inspirada da pintura sacra do italiano Savelli, cuja imagem retratava Maria grávida, com o arcanjo ao seu lado, constatando de que o destino da humanidade viria por meio dela – amplifica o significado de seus escritos, referenciados pela expressividade no existencial, embora se mantivesse crítica a si própria, quando lamentava por exemplo sua inércia quando espectadora de protestos em prol de causas demasiadamente humanas, inclusive em seu “país” Pernambuco.
“Na sua vivência pernambucana, uma das coisas marcadas eram as manifestações públicas que ela presenciava quando menina. Ela gostaria de ter sido uma lutadora, de ter tido um papel nessas reinvindicações. É uma das memórias que carregou do Recife e em ‘A Hora da Estrela’ esse desejo de participar como cidadã está impregnado. Nesse nosso tempo, creio que ela teria um olhar solidário”, complementa Montero.
No contraponto de um Clarice supostamente não-lutadora, está a desproporção de um imensurável legado que segue perfazendo outras tantas ‘clarices’ cem anos depois de sua vida física em uma humanidade insana, inflexível e pueril. Trazê-la à tona neste 2020 ultrapassa simbologias de datas que não são meras coincidências, o acaso não cabia em sua obra.
“Ela deixou o espanto que é viver. Era uma mulher de perguntas, não de respostas. Clarice nos coloca em um estágio de vivência com a vida, que é única, vai fundo na essência com uma linguagem que causa um mergulho atemporal. É que ela alcançou um patamar de projeção como personalidade, nome e obra que circulam em todos os cantos”, brada Teresa Montero, incrédula a coincidências.
“Um centenário que vem sendo gestado há muito tempo, e estoura esse vírus, e para tudo. Todos tiveram que ficar em um modo “claricioso”, o texto dela pede isso: recolhimento, o voltar-se para si mesma. Ela não desejava um leitor displicente, ela queria uma escuta atenta. Este ano de 2020 é a cara dela”.