Inteligência Artificial: novos desafios com a revolução
Tecnoglobalização da sociedade reflete nas novas práticas de ensino dentro das escolas
A educação no Brasil enfrenta uma encruzilhada onde o antigo e o novo colidem, revelando desafios que vão desde escolas com prédios deteriorados até a urgente necessidade de navegar pela tempestade digital provocada pela inteligência artificial. Enquanto a realidade de salas de aula sem recursos básicos ainda assombra milhões de estudantes, surge também a pressão para que o sistema educacional se reinvente e acompanhe o ritmo acelerado das inovações tecnológicas.
A pandemia de covid-19 foi o epicentro das mudanças que moldaram o panorama educacional global existente em 2024. A necessidade do isolamento social trouxe a questão de parar as aulas e, por consequência, o aprendizado, o que praticamente obrigou as redes de ensino ao uso de tecnologias e softwares que permitissem a manutenção das atividades de forma assíncrona.
Com a acelerada tecnoglobalização, os desafios se tornaram monumentais. Agora, educadores brasileiros repensam como reparar as rachaduras de um sistema com problemáticas estruturais antigas, enquanto tentam construir pontes para um futuro no qual a tecnologia redefine não só o aprendizado, mas também reformula a sociedade como um todo.
AUTOMAÇÃO
Para o sociólogo Sidartha Soria, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), apesar de parecer novidade, as questões envolvendo a predominância da inteligência artificial (IA) nos mais diversos sistemas socioeconômicos não passam de uma extensão dos processos de automação presentes nas relações industriais desde o século 19.
“A inteligência artificial é apenas uma nova variante daquilo que já conhecemos na sociologia da indústria. As formas de automação para atividades repetitivas, por exemplo, assumem o papel dos seres humanos há séculos desde a primeira máquina automatizada para substituir homens nas linhas de montagem de fábricas”, detalha Sidartha.
O sociólogo ressalta que a IA, de forma independente, não é o problema. Ele explica que, assim como a automação das indústrias substituiu o uso da força humana, melhorando a salubridade dos empregos fabris e a robótica aprimorou o desenvolvimento das atividades envolvendo a coordenação motora fina, a IA pretende explorar os limites do aperfeiçoamento entre máquina e humano no campo abstrato e intelectual.
“Se as máquinas conseguem emular uma série de habilidades humanas, o lugar do humano deve ser aquele que não pode ser substituído por elas, ou seja, somos a contribuição criativa, que aprimora os resultados mecânicos da IA. A humanidade inventa coisas que nenhuma máquina ou sistema até hoje foi capaz de reproduzir de forma original. Por isso, é preciso lembrar que a IA não tem a capacidade exclusivamente humana da imaginação criativa e inventiva”, observa o professor.
CAMINHOS
É com esse foco que Sidartha sugere quais os caminhos a seguir. “Pode existir um impacto destrutivo apenas quando a sociedade não está preparada para a mudança. Ao observar a IA como um parceiro valioso e não um substituto do humano, podemos focar nossas energias criativas em outros produtos e novas direções”, aponta.
A IA como parceira, e não substituta, dos professores durante o processo de aprendizado foi o ponto de partida da reforma do sistema educacional da Croácia, implementada pela Ministra da Educação e Ciência, Blaženka Divjak, durante seu mandato de 2016 a 2020. Formada em matemática e ciência da computação, ela é especialista em tecnologia educacional com foco nos métodos de ensino e aprendizagem mediados por tecnologia.
Dentro das escolas croatas, Blaženka promoveu a integração da inteligência artificial ao incentivar a adoção de tecnologias digitais e a modernização dos currículos com foco em habilidades digitais e programação. Ela também investiu na capacitação de professores para o uso eficaz dessas ferramentas e facilitou parcerias com o setor privado para fornecer recursos e soluções baseadas em IA.
Para Blaženka, fingir que a realidade da IA está longe do meio acadêmico e educacional é fechar os olhos para um cenário que só tende a crescer.
“Se você ignorar os processos tecnológicos, eles não vão desaparecer. O melhor a ser feito é entender a capacidade da IA para resolver muitos problemas dentro e fora de sala de aula. No entanto, sempre consciente de que ela não é a solução final, mas sim uma ferramenta de apoio”, frisa a ex-ministra.
DIDÁTICA
Quanto aos problemas que envolvem o uso da IA por estudantes, para trapacear em provas e trabalhos por exemplo, Blaženka alega que é preciso criar um ambiente de honestidade dentro das salas de aula.
“Quando lançaram o Chat GPT, eu pedi para que os meus alunos tentassem resolver questões de forma independente e, depois, com o Chat. Muitos acharam erros nas respostas automatizadas e preferiram suas próprias resoluções. Já outros conseguiram mesclar os dois resultados em uma conclusão mais eficiente. É preciso incentivar a honestidade do estudante, para que ele assuma quando precisou da ajuda da IA e possa compartilhar de onde vem essa necessidade”, conclui.
Uma das novas práticas, que pretende aliar ferramentas tecnológicas com o desenvolvimento do pensamento crítico dentro da metodologia escolar, trata-se da abordagem maker. O método trabalha com aprendizagem prática e ativa, incentivando os alunos a criar, construir e experimentar projetos utilizando uma variedade de materiais e tecnologias.
Assim, é possível promover a criatividade e o pensamento crítico por meio de ferramentas tecnológicas com a utilização de kits de robótica, programação de software e impressão 3D.
Martha Santos, professora dos clubes de maker e coding da escola privada ABA Maple Bear, localizada no Recife, explica que o grande propósito da tecnologia no aprendizado é auxiliar os alunos no desenvolvimento do pensamento inventivo e fora da caixa durante a apreensão do conteúdo programático das matérias lecionadas tradicionalmente.
“A tecnologia não chega como uma tarefa extra para os professores e alunos, ela faz parte do conteúdo da turma. Em uma aula de ciências, por exemplo, alunos vêm ao laboratório maker para montar soluções de como ajudar a região dos manguezais.”
Na prática, Martha explica que os estudantes conseguem chegar até o laboratório, elaborar uma proposta, desenvolver o projeto e apresentar um protótipo.
“Eles desenham um modelo, indicam quais ferramentas vão precisar, se necessitam de corte a laser, impressora 3D ou placas de controle”, exemplifica. “No final, os mais velhos também conseguem programar os protótipos para executar as funções desejadas”, completa a professora.
FUTURO
Martha, que também já acumulou experiências de trabalho na rede pública, destaca que o desafio para lidar com a tecnologia dentro da sala de aula é sempre constante.
“Na escola pública ou particular a realidade é a mesma. Todos já estão com os celulares em mãos e, no mínimo, já sabem usar o ChatGPT. Nesse cenário, o papel do professor é mediar para que aquela criança tenha entendimento daquilo que está lendo e saiba discernir se a informação fornecida pela IA é correta ou confiável. Ser um professor avesso à tecnologia é ficar para trás em uma questão não só evolucional do sistema, mas também geracional dos estudantes, porque estar em contato com o tecnológico faz parte do estilo de vida da juventude”, ressalta.
A abordagem maker retoma o pensamento do professor Sidartha Soria sobre a importância da assimilação manual e analógica. De acordo com o sociólogo, o grande perigo da interação exagerada com as tecnologias diz respeito à inércia do estudante, que fica parado enquanto as máquinas trabalham.
“O modo de desenvolver as capacidades humanas continua o mesmo: horas e horas de dedicação manual e laboral às atividades. As crianças precisam fazer contas com lápis e papel, escrever textos à mão. Isso precisa ser incentivado”, recomenda.
Segundo Rogério Morais, especialista em desenvolvimento durante a primeira infância, as competências do mundo tecnológico devem ser apresentadas com cuidado.
“A educação infantil é maker por natureza, e a mão na massa se torna fundamental quando, por exemplo, se introduzem atividades com blocos de montar que mais adiante, em uma sequência didática, podem introduzir conceitos de robótica”, diz.
Em uma geração de telas e robôs, o giz e o papel seguem como as ferramentas que abrem os caminhos para o vasto universo de possibilidades em um futuro cada vez mais conectado.