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Arte nos prédios: galeria a céu aberto

Lei municipal de 1961 obriga todo edifício com área superior a 2.000 m2 a ser construído no Recife deve conter obra de arte de reconhecido valor artístico

- Abelardo da Hora é um dos artistas plásticos renomados que ornamentam edifícios da cidade com suas obras- Abelardo da Hora é um dos artistas plásticos renomados que ornamentam edifícios da cidade com suas obras - Foto: Lucas Melo

Ao longo de mais de 60 anos, o Recife foi transformado numa uma verdadeira galeria de arte a céu aberto. Esculturas, pinturas, vitrais, murais e relevos escultóricos instalados nos prédios da capital pernambucana modificaram definitivamente a paisagem urbana, enchendo os olhos dos recifenses e de quem visita a cidade.

Além da valorização estética dos imóveis, as obras de arte que ornamentam prédios privados - a grande maioria condomínios residenciais - e públicos estão lá graças à Lei Municipal de Obras de Arte em Edificações, de 1961.

Artistas renomados e já falecidos que conceberam diversas dessas obras, como Abelardo da Hora, Marianne Peretti, Francisco Brennand, Lula Cardoso Ayres, Corbiniano Lins, José Cláudio e Aloísio Magalhães, além de contribuírem para a valorização artística desses edifícios, ajudaram a ampliar a ideia de o Recife como galeria de arte para a de museu ao ar livre.

Juntam-se a esses nomes consagrados das artes plásticas, outros também relevantes, vivos, como Cavani Rosas, João Câmara e Alex Mont’Elberto, para citar apenas três, que também produziram obras para os prédios. Da nova geração de artistas, Izabel Kiriê desponta como um dos destaques, com quase 500 esculturas para edificações aprovadas.

O artista plástico Alex Mont'Elberto, junto a uma de suas obras de arte instalada em prédio do Recife O artista plástico Alex Mont’Elberto, junto a uma de suas obras de arte instalada em prédio do Recife | Foto: Alexandre Aroeira /Folha de Pernambuco

Legislação pioneira

Tudo começou em 1961, quando o escultor Abelardo da Hora (1924-2014), então diretor da Divisão de Praças e Jardins da cidade, na gestão do prefeito à época, Miguel Arraes (1916-2005), concebeu uma lei, pioneira, exigindo que os prédios que passassem a ser construídos no município abrigassem obras de arte.

A lei, que ganhou dois ajustes ao longo dos anos, propunha, originalmente, entre outras coisas, que o espaço não edificante de todo edifício com área superior a 2.000 m2 a ser construído no Recife deveria conter obra de arte de reconhecido valor artístico, compatível com o projeto arquitetônico aprovado.

Os efeitos do artigo estendiam-se a edifícios para grande concentração pública e também com áreas acima de mil m2 (casas de espetáculo, hospitais, estabelecimentos de ensino público ou particular, hotéis, clubes esportivos etc.).

As primeiras alterações na lei ocorreram no final de 1980, no governo Gustavo Krause. Na verdade, não foram só alterações, foi também a regulamentação, já que a lei, com quase 20 anos, ainda não havia sido regulamentada. Em 1992, último ano da gestão de Gilberto Marques Paulo, houve novos ajustes na lei.

No Artigo Primeiro, passou a constar: "Todo o edifício ou praça pública com área igual ou superior a mil metros quadrados, que vier a ser construído no Município do Recife, deverá conter em lugar de destaque e fazendo parte integrante dos mesmos obra de arte, escultura, pintura, mural ou relevo escultórico de autor preferencialmente brasileiro."

Artistas pernambucanos

Os parágrafos esclarecem que a obra de arte deve integrar a edificação e não poderá ser executada com material de fácil perecibilidade; ser original, não se constituindo em reprodução ou réplica. E mais: que só podem executar os serviços artistas plásticos pernambucanos ou radicados na Região Metropolitana do Recife, previamente inscritos na Empresa de Urbanização do Recife (URB). Em 1997, a Lei de Obras de Arte em Edificações foi incorporada à de Edificações (16.292/97).

“É uma das formas mais democráticas de se apresentar uma obra de arte ao público, porque não é preciso ingressar nos prédios para apreciá-las. Elas estão ali e, da calçada mesmo, você as vê, às vezes mesmo que através das grades”, elogia o dono da Garrido Galeria, Armando Garrido Filho. O galerista, no entanto, acredita que deveria haver alguma forma de curadoria por parte da prefeitura para impedir que pseudo-artistas sejam beneficiados com a lei.

Para ele, a “pouca exigência em relação aos autores das obras” faz com que as construtoras se voltem apenas para o cumprimento da determinação legal e não com a qualidade artística. “Não sei como seria isso, se através de um corpo curatorial formado pela própria prefeitura e que viesse a estabelecer regras. Por exemplo, estabelecer se certo tipo de escultura é adequada, se atende a requisitos mínimos”, afirma. De acordo com Garrido, é uma discussão difícil, mas é possível e necessária.

Conjunto de três esculturas de Francisco Brennand no edifício Catamarã, na avenida Boa ViagemConjunto de três esculturas de Francisco Brennand no edifício Catamarã, na avenida Boa Viagem | Foto: Carlos André/Folha de Pernambuco

Cuidado minucioso

Roberto Bruscky é o técnico analista de Obras de Arte em Edificações na Fundação de Cultura da Cidade do Recife (FCCR). Único responsável pela aprovação ou não das obras de arte para os empreendimentos que serão construídos, Bruscky explica que o papel dele é fazer uma análise técnica das peças, obedecendo estritamente o que pede a lei: o material utilizado, o tamanho, a localização, se estar de acordo com o projeto aprovado pela prefeitura etc.

O profissional, que faz esse trabalho há mais de 20 anos, lembra, no entanto, que embora a análise seja técnica, há um cuidado minucioso para que uma pessoa não se passe por artista plástico para receber a certidão de habilitação e, consequentemente, ter um trabalho aprovado.

“A lei é para beneficiar os artistas. Se não fosse assim, ia abrir para todo mundo”, explica. Para requerer a certidão de habilitação, um dos documentos essenciais para submeter uma obra para edifício, o artista deve estar cadastrado na FCCR, ter o CIM (Cadastro de Inscrição Municipal) como artista plástico, não ter débitos com a prefeitura.

Analisa-se, ainda, o currículo o artista, levando-se em conta, por exemplo, exposições coletivas e/ou individuais já realizadas, trabalhos publicados, cursos na área etc. “Não cabe a mim dizer se a obra é boa ou ruim. Quem vai comprar é a construtora. Minha análise é técnica, é o que diz a lei. Eu sigo a regra da lei”, justifica.

De acordo com Bruscky, de 1992 a 2016, quando o processo ainda era realizado de forma física, foram analisadas e aprovadas 5.099 obras de arte para edificações pela FCCR. De 2016, quando o processo passou a ser digital, até hoje, o número de obras analisadas e aprovadas foi de 897. Somando-se tudo, de 1992 a 2024, 5.996 obras foram instaladas em prédios públicos e privados do Recife nos últimos 32 anos.

Ajustes sugeridos

Voltando à lei, os dois ajustes foram sugeridos pelo próprio Abelardo da Hora, que contou com auxílio do artista Alex Mont’Elberto e do arquiteto Fernando Guerra de Souza, que foi coordenador de Patrimônio da Prefeitura do Recife na época. Mont’Elberto diz que uma das coisas imprescindíveis que consta na lei é a presença do arquiteto na escolha da obra de arte. “Quando o artista apresenta a obra, tem que apresentar a localização escolhida pelo arquiteto, que assina o projeto junto com o artista, o que acho que deve ser preservado, porque a escultura interfere no projeto do arquiteto”, alerta.

Com mais de 30 obras de arte em prédios no Recife, Mont’Elberto teve sua estreia em escultura para área externa em 1981, com Acauã, peça em concreto para o prédio homônimo, na Rua do Futuro, Zona Norte da cidade. “O condomínio tem cuidado muito bem da escultura”, conta o artista.

Mont’Elberto afirma que um dos ajustes na lei foi para impedir o que ele chama de censura estética. A lei dizia que “o Habite-se do edifício só será concedido após a aprovação do projeto ou da maquete da obra de arte pelo Conselho Municipal de Cultura”. Acontece que os artistas achavam que o conselho estava sendo rígido demais em relação à inovação no uso de materiais.

“Tiramos o papel de regulamentar os critérios técnicos do Conselho e passou à FCCR, por conta da censura estética que estava havendo. Os artistas do conselho eram um pouquinho retrógrados, e estávamos numa época de inovação”, recorda. Com a chegada de novos conceitos, como o de arte efêmera, e o uso de novos materiais, a escultura tradicional passou a sofrer transformação. A adesão dos artistas a essas inovações gerou polêmica.

“Eu fui dos que começaram a trabalhar com sucata. Tinham mais outros, como o Ypiranga Filho, que fez uma escultura com para-choques e gerou uma polêmica danada. O conselho não quis aprovar, e não tinha nada a ver, a escultura, inclusive, era muito bonita”, relembra Mont’Elberto.
 

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