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Crise sanitária

Avanços da ciência ao longo da História são fundamentais na luta contra a Covid-19

Mundo já enfrentou outras pandemias e epidemias nos séculos passados. Descobertas e aprendizados extraídos de cada uma delas ajudaram a enfrentar o surto atual.

Ilustração do Sars-CoV-2, vírus causador da Covid-19 Ilustração do Sars-CoV-2, vírus causador da Covid-19  - Foto: Reprodução

Faz dois anos que os primeiros sinais começaram a aparecer na China, o “outro lado do mundo” onde a realidade sempre parece tão diferente quanto distante. E, por mais de um mês, eles se tornaram mais urgentes e graves, gerando alertas que viajaram quilômetros Oriente afora até chegar às Américas.

Era como se a infecção do novo coronavírus, que teria contaminado os humanos a partir do contato com morcegos, fosse “mais uma” dessas “doenças estrangeiras” que o brasileiro só veria na TV. Mas eis que, numa Quarta-Feira de Cinzas, o País, ainda em êxtase de Carnaval, registrava o primeiro caso sem perceber o tamanho da hecatombe que lhe invadia o território.

Naquele início, ninguém imaginava que a pandemia da Covid-19 se perduraria por tanto tempo. Em março de 2020, falava-se em “dois, três, até seis meses”, mas logo veio abril, maio, e a situação só piorava.

Os números de infecções e mortes cresciam exponencialmente, obrigando países, estados e municípios a fechar setores econômicos inteiros na tentativa de reduzir a velocidade com que o vírus saía de uma pessoa para outra e, assim, evitar o colapso dos serviços de saúde.

Hoje, quase dois anos depois daquele fim de fevereiro que trouxe ao Brasil a maior crise sanitária do último século, a humanidade ainda se vê imersa em um cenário de mudanças e incertezas, mas com alguma esperança de volta a uma “rotina normal” proporcionada pela vacinação.

De lá para cá, médicos e cientistas se tornaram figuras conhecidas na mídia, dando entrevistas diárias aos jornais e às emissoras de rádio e televisão, enquanto conceitos científicos, como “taxa de transmissão”, “imunidade coletiva” e “eficácia de vacina”, se incorporaram ao cotidiano do cidadão comum.

Neste momento, diante de tantos impactos que o Sars-Cov-2 gerou nos mais diversos aspectos da vida humana, nada seria mais apropriado do que parar um pouco para refletir sobre a principal linha de frente no combate à pandemia: o setor de saúde.

De que forma os profissionais e as instituições envolvidas neste segmento fundamental para a sobrevivência e o bem-estar das pessoas vão sair desta crise? Quais os aprendizados obtidos a partir dela? Que legado os investimentos feitos até agora deixarão para as próximas gerações? Essas são algumas das questões discutidas nesta editoria especial.

Ana BritoAna Brito, pesquisadora da Fiocruz (Foto: Divulgação)

Acúmulo de experiências
Apesar da virulência com que tomou de assalto o mundo contemporâneo, a Covid-19 está longe de ser a primeira experiência com transmissão de doenças em escala intercontinental. Da hoje longínqua “peste negra”, que devastou partes da Europa e da Ásia no fim da Idade Média, ao surto do ebola na África subsaariana na década passada, as sociedades enfrentaram diferentes ciclos de contágio pelo contato com seres microscópicos presentes na natureza.

Das crises historicamente recentes, surgidas a partir do século 20, a Gripe Espanhola (1918-1920) é a que mais se assemelha à crise atual - tanto pelo tipo de agente causador quanto pela dimensão que adquiriu.

Desde então, o mundo e, particularmente, o Brasil encararam ainda outras epidemias e endemias desafiadoras, como a epidemia de Aids nos anos 80 e 90 e os surtos de meningite, da cólera, do Influenza A (H1N1) e das arboviroses, dengue, chikungunya e zika - sendo este último o responsável pela explosão de casos de microcefalia em 2015 no Nordeste. Em cada um desses momentos históricos, a ciência fez descobertas que proporcionaram novas práticas para a medicina.

“A ocorrência de doenças que atingem uma grande parte da população nos traz várias questões para reflexão. Uma delas é o acúmulo de produção de conhecimento científico”, afirma a médica Ana Brito, professora e pesquisadora do Instituto Aggeu Magalhães (Fiocruz-PE).

“Por exemplo, as hepatites nos incluíram, lá nos anos 70, um arsenal diagnóstico e terapêutico quase impensável para vírus. Eu diria que o precursor da imunologia para o enfrentamento de doenças meningocócicas, do sarampo e até do ebola foi o estudo das hepatites virais”.

Esse volume de saberes adquiridos no século passado foi fundamental para que o desenvolvimento da vacina contra a Covid-19 fosse realizada em menos de um ano.

“A velocidade com que o mundo foi capaz de, em dez meses, ter formulado vacinas com tecnologias diferentes é decorrente desse grande aprendizado que se vem tendo desde os anos 70”, comenta a professora. “Nós precisamos reafirmar a importância da ciência tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento e a prevenção das doenças”.

As observações de Ana Brito encontram eco nas palavras de Eduardo Jorge Fonseca, representante da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) em Pernambuco. “Não imaginávamos que a pandemia alcançaria números tão expressivos, mas o Sars-Cov-2 veio para lembrar aos profissionais de saúde que é importante ter toda uma tecnologia por trás, já em andamento, para termos uma vacina rápida”, observa.

Como recorda o especialista, não é de hoje que os cientistas conhecem o coronavírus, família de vírus que inclui o Sars-Cov-1 e o MERS-Cov, responsável por um surto de síndrome respiratória no Oriente Médio em 2012.

“As pessoas sempre se preocupam em como, para a Covid, surge uma vacina em poucos meses, quando, em geral, ela passa por estudos clínicos que duram dez, quinze anos. Mas isso aconteceu porque as vacinas de RNA mensageiro (caso do imunizante da Pfizer) vinham sendo estudadas há muitos anos, e as de vetor viral, como a da AstraZeneca, já tinham sido estudadas para o Sars-Cov-1 e o MERS”, explica.

Vice-presidente da Sociedade Pernambucana de Pediatria, Eduardo Jorge FonsecaEduardo Jorge, representante da Sociedade Brasileira de Imunizações em Pernambuco (Foto: Gleyson Ramos/Divulgação)

As adaptações da medicina
Apesar dos paralelos que podem ser traçados com outros momentos da História, é inegável que o novo coronavírus trouxe um senso de urgência diferente dos impactos causados pelas epidemias das últimas décadas, com protocolos específicos que destoavam das ações adotadas, por exemplo, na época da Aids ou da cólera.

“No começo de 2020, ninguém sabia o que era Covid e que estava diante de algo novo. Até as medidas de biossegurança eram diferentes. Tínhamos [nas crises anteriores] o uso de máscaras, mas agora havia algumas peculiaridades, com aquelas roupas pesadas durante muito tempo e os pacientes sem poder se misturar. A partir de março, quando os primeiros profissionais de saúde na linha de frente começaram a morrer, me vi dentro do processo”, conta a gestora hospitalar, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e consultora de biossegurança da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Sylvia Lemos.

Aos 60 anos, dentro da “faixa de risco”, a médica acabou infectada pouco tempo depois. E foi ali, em casa, isolada do mundo, que ela sentiu no próprio corpo, como muitos dos colegas, o que os pacientes vivenciavam. “Só saí da cama por volta do 10º dia e aí comecei a entender o que era ter Covid. A romantização da professora de biossegurança, que ensina e preparava tudo, caiu”, diz. “Depois que melhorei, resolvi que ia entrar no mundo on-line e veio o grande ganho”.

Convidada a dar aulas para um programa de pós-graduação em Medicina Tropical e, posteriormente, de volta às turmas da graduação na UFPE, onde é professora titular, Lemos se apropriou de ferramentas como Zoom, Teams e Meet, plataformas que, a partir daí, serviram de suporte em entrevistas, podcasts e “lives”.

“Fui conhecendo mais a doença e comecei a fazer consultas pelo WhatsApp. Tinha fechado o consultório em março e, em dezembro, os convênios me perguntaram se eu fazia teleconsulta. Passei a usar as plataformas que eles mandavam e, até junho deste ano, atendi mais de mil pacientes”, informa a médica.

Mulheres atuando na pandemia da gripe espanholaMulheres atuando na luta contra a Gripe Espanhola (Foto: Divulgação/Biblioteca do Congresso dos EUA)

Além da infectologia, a pandemia provocou uma sobrecarga de trabalho em outra especialidade fundamental no combate à Covid-19: a dos profissionais intensivistas.

O vice-presidente da Sociedade de Terapia Intensiva de Pernambuco (Sotipe), Arthur Faria, lembra que o grande desafio ao longo desses quase dois anos foi garantir a oferta de leitos nas UTIs. Em um cenário de tanta gente internada ao mesmo tempo, as unidades dedicadas aos pacientes em estado grave tiveram notoriedade na crise, perdendo um pouco do estigma que as associa à noção de “sentença de morte”.

“A terapia intensiva é uma especialidade médica relativamente recente, que tem em torno de 50 anos, e ninguém conhecia a UTI, o local aonde a pessoa ia ‘para morrer’. Não se tinha a noção de que é um lugar de cuidado intensivo, de vigilância maior. Ninguém sabia o que era ventilação mecânica. Então, houve uma divulgação do que é a UTI e de como o médico intensivista trabalha. Além disso, agora, as equipes trabalham de maneira mais coesa”, observa o médico.

A corrida por soluções para atendimento de urgência a um grande contingente de pessoas ampliou também o uso de tratamentos, sendo alguns deles pouco conhecidos antes da pandemia.

“Por exemplo, para ofertar oxigênio, usávamos um dispositivo que fazia um fluxo menor com uma concentração menor. Agora, começamos a usar uma máscara com uma bolsa não reinalante. A vantagem é que ela consegue ofertar uma concentração maior de oxigênio, que pode chegar a 100%. No Brasil, era muito pouco usada”, diz o intensivista Arthur Faria.

Vacinação em Jaboatão dos GuararapesVacinação contra a Covid-19 é resultado de descobertas científicas ao longo da História (Foto: Leandro de Santana/PJG)

O valor social da saúde
Outra necessidade que a crise encadeada pelo novo coronavírus ajudou a desvelar é a manutenção de um serviço sustentável e acessível para toda a população. Essencial para a sobrevivência e a qualidade de vida das pessoas, especialmente das mais pobres, o Sistema Único de Saúde (SUS), ao garantir cobertura universal, contribui ainda para a redução das desigualdades sociais.

E, levando em conta a dinânica dos ciclos históricos que a humanidade sempre viveu, tê-lo bem estruturado é a melhor forma de preparar a sociedade para outras pandemias que venham a surgir.

“A restituição dos recursos necessários para o pleno funcionamento do sistema é fundamental. É preciso também que se recupere a capacidade técnica das nossas equipes, principalmente do Ministério da Saúde, mas em todos os níveis da gestão”, analisa a pesquisadora Ana Brito.

“O SUS precisa ser financiado de maneira adequada, com treinamento continuado das equipes de saúde, reestruturação do nosso programa de imunização e, sobretudo, o fortalecimento da atenção básica. Se as unidades de atenção básica tivessem sido mais requisitadas, teríamos um saldo muito mais positivo no enfrentamento dessa pandemia”.

Dessa forma, não há como negar que as ações tomadas para conter a crise são condicionadas não só ao contexto socioeconômico da população, mas também à relação entre as pessoas e os governos. Não à toa, em meio ao aumento da pobreza, especialistas e autoridades têm ampliado o debate sobre políticas de bem-estar social, como a renda básica universal e a melhoria dos serviços de saúde.

Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (Nepe) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE, Renato Athias defende que sejam abertos mais espaços de participação popular nas gestões públicas, com a volta dos conselhos formados por entidades da sociedade civil e fechados ainda antes da pandemia.

“As discussões continuam presentes nos espaços sociais, mas o poder de decisão não está com os diversos setores da população”, avalia.

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