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Saúde integral vai além de um corpo saudável; entenda

Com a criação do SUS, o Brasil começou a ampliar o conceito de saúde além do corpo físico, que se refletiu, entre outros fatores, no princípio da integralidade

A ideia do integralismo precisa levar em conta necessidades sociais, a saúde mental e a espiritualA ideia do integralismo precisa levar em conta necessidades sociais, a saúde mental e a espiritual - Foto: Nakedcm - Freepik.com

Para começar esta leitura, lançamos uma pergunta: o que é saúde? Provavelmente, boa parte das pessoas responderá que “é a ausência de doença” - o que não chega a ser um equívoco, mas é apenas um recorte, uma compreensão generalista que passa somente pela visão biológica do ser. Esse conceito ganhou amplitude com o passar do tempo, nos meios médico e científico.

A saúde integral carrega um significado mais abrangente, pois também leva em consideração, além da visão puramente biológica, os aspectos sociais e outras determinantes para definir o que é uma condição humana plena de bem-estar. Nesta edição, a Folha Saúde se propõe a esmiuçar esse conceito e traçar um panorama de como essa concepção vem sendo aplicada e efetivada nas práticas médicas, no sistema de atendimento brasileiro e na vida das pessoas.

“A saúde é direito de todos e dever do Estado”. É assim que começa o artigo 196º da Constituição Federal de 1988, na seção que trata especificamente do tema, até o artigo 200º. É ali que se encontram as diretrizes básicas de como deve ser gerida a saúde, qual o papel do poder público na sua regulamentação, fiscalização e controle, e como funciona o seu financiamento, entre outras definições.

Já o artigo 198º define o Sistema Único de Saúde, o SUS: “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado [...]”. Como diretrizes, o modelo prevê a descentralização, o atendimento integral e a participação da comunidade.

Trata-se de um sistema integrado que se propõe a garantir a todos o acesso à saúde gratuita, da atenção básica à alta complexidade, apresentando princípios como a universalidade, a equidade e a integralidade.

A implantação do SUS é resultado da Reforma Sanitária Brasileira, movimento que se iniciou nos 1970 e que propunha uma série de mudanças no setor da saúde. Entre seus principais objetivos, estavam as melhorias nas condições de vida da população, a formulação de políticas específicas na área, assim como a universalidade no direito à saúde.

Um marco desse processo foi a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu em 1986. Seu relatório final definiu saúde como resultado das condições de alimentação habitação, educação, trabalho, lazer e acesso aos serviços de cuidados médicos.

“Os princípios da Reforma Sanitária Brasileira são de uma riqueza muito grande, trouxeram para a saúde pública no Brasil um salto qualitativo enorme”, diz a doutora em Serviço Social, professora da UFPE e pesquisadora Raquel Soares. Segundo ela, foi a partir daí que se passou a pensar a saúde não só como um atendimento restrito ao indivíduo e ao seu corpo físico -  ou a partes do seu corpo físico -, mas a pensar, perceber e compreender o indivíduo como um todo, “um complexo de totalidades maiores”, definiu a professora. Essa ampliação do conceito de saúde se reflete, entre outras coisas, no princípio da integralidade.

A integralidade do ser humano
Com a criação do SUS, que assume o princípio da integralidade como um dos compromissos a se garantir, de acordo com a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Saúde, o conceito de saúde integral ganha complexidade, uma vez que se conecta com aspectos diversos. Um dos mais profícuos estudiosos do tema, Ruben Araújo de Mattos (in memoriam), que foi professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, estabeleceu três conjuntos de sentidos diferentes (e complementares) para a integralidade.

O primeiro trata o assunto como um aspecto da boa medicina, sob uma perspectiva humanizada, que não reduz a atenção à saúde apenas a seu aspecto biológico, mas que procura entender o ser humano como um todo, em sua completude.

A pesquisadora da Fiocruz Pernambuco e Coordenadora do Observa Pics, Islândia Carvalho, observa que a saúde não é só um contraponto de doença. “Ela precisa levar em conta as necessidades de característica social, a saúde mental, a saúde espiritual. Essa ideia do integral é do indivíduo como um todo”, afirma.

Islândia Carvalho (Fiocruz-PE)A pesquisadora da Fiocruz Pernambuco Islândia Carvalho diz que a saúde não é só um contraponto de doença | Foto: Fiocruz Pernambuco/Divulgação

Ou seja, é preciso levar em consideração que a saúde do indivíduo é afetada não só por uma doença que o acomete, mas também pelas condições sociais, de classe, gênero, raça, espiritualidade, mentais etc. “Nosso objeto na saúde são as questões da expressão social que interferem no processo saúde-doença: a pobreza, falta de acesso à informação, acesso às políticas sociais, dos direitos da criança, do idoso, da população LGBTQIA+”, considera a professora da UFPE Raquel Soares.

Ações e práticas integrais
O segundo conjunto de sentidos sugeridos por Ruben Araújo de Mattos refere-se à integralidade como a organização e articulação das ações e práticas voltadas à saúde, de modo a garantir o seu cuidado integral. Ou seja: como se dá o conjunto de ações, como se dá o fluxo delas no sistema de saúde, atendendo a esse ou àquele paciente, procedendo os encaminhamentos necessários para cada indivíduo, e como se articulam de modo coordenado.

“É preciso que as ações em saúde estejam integradas, que todos os níveis de atenção em saúde estejam integrados, desde a prevenção em saúde, à promoção, à assistência à saúde - e dentro da assistência, os níveis da assistência”, comenta Raquel Soares.

Para o médico, psicanalista e coordenador da residência em Medicina de Família da UFPE, Vitor Hugo de Lima Barreto, é preciso “manejar essa pessoa no sistema de saúde - público ou privado -, e dar a ela o acesso que ela precisa”, destaca. “Às vezes, a pessoa vai para uma consulta com o médico de família e diz: ‘mas eu quero ir para o gastro, para o endócrino, para o vascular’. Então, vamos pensar se é realmente necessário, se não conseguimos resolver as demandas logo nesse primeiro momento”, afirma o médico. Segundo ele, a ida a um especialista pode ter benefício, mas pode também ser danosa porque, às vezes, o especialista verá somente uma parte do problema, sem conseguir integrá-lo ao todo da pessoa.

A saúde como política pública
No terceiro conjunto de sentidos proposto por Araújo de Mattos, está o entendimento de integralidade como as políticas criadas e articuladas para responder às necessidades em saúde dos indivíduos ou de grupos sociais. Então, retorna-se ao SUS, mas não somente a ele, também a todo o conjunto de políticas governamentais que, articuladas, incidem na realidade final daquele indivíduo ou grupo social.

“Não existe uma ação ou uma política específica de saúde integral, porque todas elas, em conjunto, é que vão fornecer a saúde integral ao indivíduo”, diz  Islândia Carvalho, a pesquisadora da Fiocruz Pernambuco. “Todas as políticas, hoje, estão sendo formatadas nessa perspectiva de uma saúde integral”, afirma.

Raquel Soares exemplifica: “As famílias que mais são acometidas por arboviroses - dengue, zika, chikungunya - moram nas periferias, onde, em geral, há dificuldades no acesso à água e saneamento. Então, não adianta só investir na prevenção em si - que inclui o acesso à informação, à educação em saúde. Se não mudar o acesso à água e ao saneamento, se não mudar as condições de vida dessa população, ela vai continuar adoecendo”, afirma. Para a professora, a promoção da saúde implica ter políticas mais estruturais em outras áreas, “na assistência social, no saneamento, na habitação, na educação, no trabalho”, diz.

A perspectiva da integralidade
Na formação dos profissionais médicos brasileiros, o conceito de integralidade já está posto na grade curricular. “Geralmente, quem ensina isso é o campo da saúde coletiva, da saúde pública, da medicina da família. São essas disciplinas que, de alguma forma, abarcam a saúde integrativa”, explica Lima Barreto. A Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014, do Ministério da Educação, institui as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de Graduação em Medicina e inclui a integralidade.

“A Medicina de Família e Comunidade já é uma área interdisciplinar: inclui conhecimento das Ciências Sociais - saúde, sociedade, família-, conhecimento da Saúde Pública, da Saúde Coletiva, da Clínica Médica, mistura tudo isso na prática. A própria Medicina da Família já é integrativa”, explica Vitor Hugo, o coordenador da residência em Medicina de Família da UFPE.

Ações do poder público
Nas esferas municipal e estadual, as gestões públicas têm promovido ações que visam a fortalecer a integralidade dos serviços de saúde. A Prefeitura do Recife, por exemplo, vem implementando uma série de medidas que giram em torno da inovação tecnológica, da ampliação do quadro de profissionais e ações que envolvam a participação integral da sociedade.

Entre as inovações que aproximam a população do sistema de saúde estão a criação do aplicativo “Atende em Casa”, em 2020, durante o período da pandemia de Covid-19, agora reformulado e chamado de “Atende Gestante”, com teleassistência obstétrica. Também foi criada a plataforma “Minha Cidade Conectada”, lançada em maio de 2023, que disponibiliza o histórico médico dos pacientes das unidades de saúde na capital pernambucana.

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