Conceito de clube-empresa em pauta no Trio de Ferro; veja as vantagens e riscos do modelo
Folha ouviu dirigentes dos clubes e especialista no assunto para analisar quais mudanças podem ocorrer com a mudança no comando da instituições
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O futebol brasileiro vai mudar. Se para melhor ou pior, só o tempo dirá. Como todo processo de transformação, o início gera incertezas e cria cenários que dividem os mais esperançosos dos desconfiados. Lados distintos dentro da discussão envolvendo a conversão de clubes de futebol em empresas. Assunto que tomou conta dos noticiários após a compra de 90% das ações do Cruzeiro pelo ex-jogador Ronaldo, em uma transação de R$ 400 milhões, tornando a Raposa uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF), após a aprovação da Lei 14.193/21. Na última sexta, o Botafogo também vendeu a mesma porcentagem de suas ações a um dos sócios do Crystal Palace, John Textor, por R$ 410 milhões. Outros clubes estão de olho no mesmo caminho. Há, porém, quem observe a novidade com preocupação.
Os clubes atualmente não são obrigados a virar empresa - a maioria são associações sem fins lucrativos. Contudo, com a adoção do SAF, eles podem ser vendidos a grupos que controlarão o futebol, desde os contratos profissionais como as dívidas anteriores e os lucros posteriores. Há diferentes formatos de negociação de venda, como a porcentagem das ações comercializadas. Há separação envolvendo o futebol em relação à parte social. Para virar SAF, é preciso aprovação do Conselho Deliberativo - o Cortiba, por exemplo, conseguiu, mas ainda não foi adquirido por um investidor.
Interesses na compra um clube
O Cruzeiro não é o único a adotar o novo modelo de gestão. O RB Bragantino foi vendido a Red Bull, empresa de bebidas energéticas, enquanto o Cuiabá é comandado pela Drebor, da área de recapagem de pneus. Segundo o jornalista Irlan Simões, autor do livro “Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol”, os investidores que se interessam pelo ramo esportivo normalmente possuem algumas características.
“É muito comum que os clubes sejam comprados para finalidades políticas, não somente eleitorais. O clube dá um retorno à imagem dos donos que é incomparável a outros investimentos. Além disso, há quem opte por comprar clubes em baixa, estruturar e vender lá na frente por um valor maior do que foi adquirido”, disse Simões. “Acho que os clubes estão se antecipando muito no debate. A ideia da SAF, com a centralização das dívidas, é o que mais os atrai. Mais do que a promessa de investidores. Mas se um clube vira empresa e não consegue cuidar bem do processo, ele vai à falência. Algo que não acontece no modelo de associação”, completou.
Não basta imitar a Europa
Novidade no Brasil, o modelo de clube-empresa é consolidado na Europa. Metamorfose que não foi totalmente voluntária. "Muitos países que consideramos modelos são casos de uma transformação compulsória. São poucos os que escolheram. Os clubes ingleses sempre foram empresa. Espanhóis e italianos foram obrigados a virar. Os alemães também, desde que a associação fosse a controladora. O torcedor não pode achar que é uma lógica determinista: o clube vai se transformar em empresa, atrair investidor, receber aporte financeiro, ficar mais transparente e, inevitavelmente, ter resultados esportivos. Não existe um modelo ideal de gestão de clube. No fim das contas, o diferencial é a capacidade de acerto de quem está à frente", declarou.
"O maior mito é achar que qualquer dono será um mecenas. Muitas vezes, o perfil é de alguém sem a destreza de tocar o negócio ou sem a retaguarda financeira para socorrer em momentos de dificuldade, que podem abandonar os clubes por não ganharem dinheiro, como foi com o Vitória no passado. Os investidores prometerem aportes financeiros que não aconteceram. O clube caiu à Série C e foi preciso recomprar as ações para fazer com que a associação voltasse a ter controle", exemplificou.
Trio de Ferro aprova SAF
Dirigentes de clubes pernambucanos já se posicionaram a favor da ideia. "A gente vê com muita simpatia o projeto do SAF. Acredito que ele pode ser um grande caminho para o Náutico", afirmou Diógenes Braga, que assumirá a presidência do Timbu no biênio 2021-2022. "Já no início de 2022, eu devo conversar com Pedro Leonardo (presidente do Conselho Deliberativo) no sentido de montarmos um grupo de trabalho para ver qual o melhor modelo que se encaixa para o Sport”, explicou Yuri Romão, presidente em exercício do Leão, em entrevista à Rádio Jornal. No Santa, o mandatário do clube, Joaquim Bezerra, disse que o assunto está sendo analisado com cuidado.
SAF sozinha não faz milagre
Enquanto os dirigentes se mostram otimistas, Simões reforça que é preciso modificar outros aspectos no futebol brasileiro."A divisão de receitas dos direitos de transmissão é desigual. Se não revertermos isso, não adianta ser empresa. O clube precisa se estruturar em um processo de longo prazo, com profissionalização real. O Athlético começou isso em 1995 e não precisou se transformar em empresa. Os clubes do Nordeste precisam entender que esse fosso para o eixo Sul-Sudeste é um reflexo da desigualdade econômica e geográfica do Brasil. Estamos em uma região mais pobre, com um mercado mais frágil, sem grandes empresas capazes de patrocinar os clubes. Recebemos direitos menores e não temos público que ultrapasse as regiões metropolitanas por conta de um processo histórico de consumo do futebol pela televisão. O debate é complexo. Independente de virar empresa ou não, os clubes precisam se modernizar. O futebol é uma roda gigante. Qualquer erro em um ano pode comprometer os próximos dez. É fácil pensar o clube-empresa como uma moeda, olhando apenas o lado do dinheiro. Ninguém pensa no outro, que são os inúmeros riscos de ter um proprietário".
Confira na íntegra a entrevista com Irlan Simões
1 - Quais os principais perfis de investidores que podem ter interesse em adquirir clubes no Brasil? Você acredita que há o risco de empresários com pouco conhecimento sobre o esporte entrarem nesse meio (com risco de piorar a gestão das instituições) ou de "aproveitadores", com intenções políticas/publicitárias? Ou a tendência é que seja alguém da área, como foi o caso do Cruzeiro, com Ronaldo?
R- Existe hoje uma situação momentânea na economia de uma injeção de recursos para estimular investimentos por conta da pandemia, o que levaria certos grupos a investir em segmentos de maior risco, como o futebol. No Brasil, isso é de alto risco e o perfil do comprador é diferente da Europa. Por exemplo, os grupos árabes e fundos do Oriente Médio não são do tipo que comprariam clubes brasileiros porque o País não está dentro da rota geopolítica, com uma liga de visibilidade global. Não acho difícil grupos econômicos brasileiros ou que circulam na economia daqui comprarem clubes que estejam à disposição. É muito comum também que eles sejam comprados para finalidades políticas, não somente eleitorais, mas também pela importância que a instituição dá aos proprietários. O clube dá um retorno à imagem dos donos que é incomparável a outros investimentos. Além disso, há quem veja o esporte como o produto que pode levar a ganhos reais. Ninguém tem a expectativa mais de comprar um clube e desenvolver uma atividade lucrativa apenas com o futebol. Como é muito instável, quase como uma lógica de um cassino, é difícil garantir uma sequência de resultados positivos ao longo dos anos. Por isso, o perfil é de investidores que compram clubes em baixa, estruturam e vendem lá na frente por um valor maior do que foi comprado. Não descarto que isso aconteça aqui, citando até o caso do Cruzeiro e Ronaldo.
2 - Você acha que os clubes brasileiros estão se "precipitando" ou "acelerando" a mudança, na pressa em cuidar das dívidas e pela pressão de resultados dentro de campo- apostando na Lei do SAF como solução dos problemas?
R – Acho que os clubes estão se antecipando muito. A ideia da SAF, com a centralização das dívidas, é o que mais os atrai. Mais do que a promessa de investidores. Acho que poucos clubes têm interessados reais, com algum tipo de conversa. É um processo longo, que precisa de propostas concretas. Os clubes querem criar a SAF para fazer o refinanciamento de dívidas. Quase como o Profut, mas com a diferença de ter a exigência de o clube virar empresa. Mas o mecanismo exige muita coisa, como essa reversão de 20% da receita líquida para pagamento da dívida que é da associação. Tenho a impressão que as coisas estão acontecendo mais pela pressa do que pela capacidade de fazer. Se um clube vira empresa e não consegue cuidar bem do processo, ele vai à falência. Algo que não acontece no modelo de associação. Também existe uma suspeita se esses compradores terão capacidade financeira para tocar o clube sem maiores traumas.
3 - Muitos tratam a SAF como a saída, mas qual o pior cenário da mudança para clube empresa? Acredita que ainda há pouco conhecimento dos dirigentes quanto ao assunto?
R – O discurso de transformação de associação para a empresa tem uma força grande ao ponto de criar uma hegemonia política no debate. Sou um dos poucos que consegue fazer uma discussão mais crítica, junto com outros pesquisadores e jornalistas, citando cautelas dentro de um processo complicado. O que se coloca muito em discussão é o dinheiro que vai entrar e não o risco que os clubes correm. Além de certo desconhecimento, sem imaginar mecanismos de proteção e de mudança de direção, com recompra de ações, por exemplo. Fora isso, há também a própria janela de oportunidade que se abre para movimentações ilegais com os recursos do clube. Isso não pode ser tirado da equação. É um poder grande na mão de quem fica à frente desse processo. Imagine vender os ativos de uma instituição centenária, com milhões de torcedores, com carta branca para fazer o que quiser. Em alguns casos, as mesmas pessoas que já destruíram os clubes serão as responsáveis por vender os clubes.
4 - Quais as principais diferenças que existem/existirão em um modelo de clube empresa no Brasil com o que é adotado na Europa? Existe algum "modelo ideal"?
R – Muitos países ou clubes que consideramos modelos, são casos de uma transformação compulsória. São poucos os que escolheram. Os ingleses sempre foram empresa. Espanhóis e italianos foram obrigados a virar. Os alemães foram obrigados a criar uma empresa, desde que a associação fosse a controladora. Em Portugal, os clubes também tiveram de criar uma empresa, com controladoras em suas associações. O processo de transformação dos europeus não foi voluntário. O torcedor não pode achar que é uma lógica determinista: o clube vai se transformar em empresa, atrair investidor, receber aporte financeiro, ficar mais transparente e, inevitavelmente, ter resultados esportivos. Não é assim, infelizmente. A história do futebol mostra que é diferente. Não existe um modelo ideal de gestão de clube. Existem casos fracassados e bem sucedidos em todos os modelos. No fim das contas, o diferencial é a capacidade de acerto de quem está à frente, fazendo o futebol dá resultado esportivo, sem comprometer o financeiro. Embora, em muitos casos, existe o esportivo, mas não o financeiro, mas as pessoas não se importam tanto porque acham que ser bem sucedido é ser somente vitorioso em campo. Muitas vezes, o clube bem gerido não ganha (títulos) por ter finanças equilibradas. Esse é o grande paradoxo do futebol e não sei se o Brasil está preparado para discutir isso.
5 - Há quem enxergue o atual modelo dos clubes como "oligarquias", com pequenas famílias ou grupos políticos se revezando no poder. Você acha que esse tipo de visão incentivou a crescente no apoio à ideia do clube empresa?
R – Associações civis podem ter muitos modelos. No Brasil, na grande maioria, temos o pior tipo possível na grande maioria dos clubes de massa. Em geral, eles seguem oligarquias e tradições antidemocráticas. Comparado com outros países, o grau de participação de associados é menor. Lá fora, tem 20, 25 mil pessoas votando em eleições. No Brasil, há instituições que definem suas novas diretorias com menos de dois mil sócios. Para o torcedor comum, sendo a favor ou não da transformação em clube empresa, que nunca teve acesso à discussões políticas no clube, pode não existir uma diferença entre o grupo que controla o clube há décadas e um futuro dono. Talvez, em tese, seja até melhor ter um dono porque ele teria uma pretensão de fazer um clube bem gerido por ter o dinheiro dele em jogo. Também acho que o termo “conselheiro” foi mal colocado nos últimos anos. O conselheiro é, de certa forma, um representante dos associados dentro do Conselho Deliberativo. Desde que sejam eleitos junto com o corpo de associados. Mas a maioria dos clubes é tão fechado que os conselheiros são metade vitalícios ou natos, por exemplo. Não são ativos, com dedicação à proteção do clube. Em se tratando de clubes controlados por grupos poderosos, isso (mudança para clube empresa) seria bem parecido. No fim, pessoas controlariam um patrimônio construído por milhões de pessoas.
6 - Quais os maiores "mitos" que você vê as pessoas erroneamente destacando sobre o tema?
R – O maior mito é achar que qualquer dono será um mecenas. Pelo contrário. Muitas vezes o perfil é de alguém que deseja explorar financeiramente, mas sem a destreza de tocar o negócio ou sem a retaguarda financeira para socorrer em momentos de dificuldade. O que, por fim, podem acabar abandonando os clubes por não ganharem dinheiro, como foi com o Vitória. Os investidores prometerem aportes financeiros que não aconteceram. O clube caiu à Série C e foi preciso recomprar as ações para fazer com que a associação voltasse a ter controle. O meu livro é justamente para desfazer esses mitos de que essa mera transformação traria somente benefícios.
7 - Os clubes do Nordeste possuem uma disparidade financeira em relação aos do eixo Sul-Sudeste. Você acredita que eles podem buscar a mudança para clube empresa com o pensamento de tentar diminuir essa diferença?
R – É uma ilusão que se cria. A divisão de receitas já é desigual. Começa com a questão dos direitos de transmissão. Se não revertermos essa desigualdade e o que isso causa nos clubes, não adianta ser empresa. Foi isso que aconteceu com Bahia e Vitória. Acreditavam que eles passariam a disputar nas cabeças, mas estavam jogando Série A sem sequer chegar perto do topo e depois foram rebaixados. As pessoas acreditavam que chegaria um mecenas, um xeique...não é assim. O clube precisa se estruturar em um processo de longo prazo, com profissionalização real. O Athlético começou esse processo em 1995 e não precisou se transformar em empresa. Os clubes do Nordeste precisam entender que esse fosso para o eixo Sul-Sudeste é um reflexo da desigualdade econômica e geográfica do Brasil. Estamos em uma região mais pobre, com um mercado mais frágil, sem grandes empresas capazes de patrocinar os clubes. Recebemos direitos menores e não temos público que ultrapasse as regiões metropolitanas por conta de um processo histórico de consumo do futebol pela televisão. O debate é complexo. Independente de virar empresa ou não, os clubes precisam se modernizar. Criar mecanismos de participação e controle. O futebol é uma roda gigante. Qualquer erro em um ano pode comprometer os próximos 10, 15 anos. É fácil pensar o clube empresa como uma moeda, olhando apenas o lado do dinheiro. Ninguém pensa no outro, que são os inúmeros riscos de ter um proprietário.