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CASO DANIEL ALVES

Denúncia, limite, reparação: Julgamento de Daniel Alves é 1º grande teste de lei "Só sim é sim"

Análise judicial de acusação de estupro contra lateral brasileiro é simbólica e pode refletir mudanças e conferir 'efeito pedagógico' à sociedade espanhola, afirmam especialistas

Daniel Alves durante julgamento de estupro em Barcelona Daniel Alves durante julgamento de estupro em Barcelona  - Foto: AFP

Há processos que são simbólicos porque produzem mudanças, porque são o resultado delas ou porque as refletem. Iniciado nesta segunda-feira, o julgamento de Daniel Alves por agressão sexual é um deles. É também o primeiro teste midiático sob a vigência da nova lei contra assédio e abuso sexual na Espanha, batizada de "Só sim é sim".

O jogador brasileiro é acusado de estuprar uma jovem no banheiro da sala VIP da boate Sutton, no dia 31 de dezembro de 2022. O Ministério Público pediu que ele seja condenado a 9 anos de prisão; a vítima defende a imposição de 12 anos de reclusão.

A nova lei nasceu justamente de uma mudança social na Espanha, no que diz respeito à percepção da violência sexual. “Por causa da norma, até agora, só vimos os aspectos negativos”, afirma a jurista Altamira Gonzalo, que se refere “às libertações e reduções de pena que eclipsaram todo o conteúdo da lei". Mas, segundo ela, com a nova legislação, garante-se o tratamento integral às vítimas de violência sexual, o que diferencia o contexto e as consequências das denúncias do passado.

Quais são essas diferenças? O que podem significar para a vítima de Daniel Alves? E para o processo? A promotora da Câmara de Violência contra a Mulher Teresa Peramato, a ex-delegada do Governo contra a Violência de Gênero Victoria Rosell, o também ex-delegado Miguel Lorente e a jurista Altamira Gonzalo analisam como a nova lei pode impactar o julgamento em Barcelona.

A denúncia
Victoria Rosell lembra que “nestes primeiros casos [da nova lei] que se conhecem, algo essencial é a própria denúncia”, porque são “aqueles [casos] que em geral não existiam, quando você entrou voluntariamente no banheiro ou iniciou toques consensuais que se tornam não consensuais … Foi aí que houve mais preconceito e mais impunidade” no passado, segundo ela.

Ainda mais quando, como neste caso, o alegado agressor é conhecido, influente e tem enorme capacidade econômica. A percepção dos especialistas é que “a consciência dos últimos anos em relação à violência sexual tem a ver com o fato de que isso [a noção sobre a denúncia] está mudando”.
 

— Em 2022, foram apenas 17 mil denúncias, muito poucas. Para que tenhamos uma referência, as denúncias de violência sexista são em média 165 mil por ano. Das 17 mil, foram proferidas 3.148 penas condenatórias, 66% (2.074) são de 0 a 2 anos, ou seja, [os culpados] não cumprem pena de prisão se não houver antecedentes criminais. Podemos dizer que a violência sexual é um crime que goza de relativa impunidade, não só em Espanha, mas em todo o mundo — afirma Altamira Gonzalo.

Protocolos que podem mudar tudo
Altamira Gonzalo diz, ainda, que esta consciência sobre a denúncia está relacionada com o contexto em que ela foi feita:

— O fato de a discoteca onde ocorreram os fatos ter um protocolo [de reação à denúncia] e colocá-lo para funcionar fez com que a vítima tivesse a oportunidade de pedir ajuda, denunciar, e [possibilitou] a prisão do suposto agressor — diz ela.

Esse protocolo da discoteca de Sutton (No callamos) foi aplicado, segundo as diversas fontes consultadas na época por El País, sem quaisquer fissuras: desde o primeiro filtro, o porteiro que percebeu que algo havia acontecido, até a chegada da polícia local, Mossos d'Esquadra.

O questionamento das mulheres
Outro elemento interessante e importante para Miguel Lorente é o questionamento da vítima, “um dos grandes argumentos que as defesas têm tido em casos de violência sexual”. Isso se refere a uma suposta responsabilidade das próprias vítimas: se tinham bebido, se tinham flertado anteriormente, se tinham consentido no início da relação.

São elementos que fazem parte da cultura do estupro e que estão cada vez menos enraizados e são, agora, com a nova lei, “mais fáceis de identificar” pela população, pelas instituições e também pelas próprias vítimas.

Renunciar à compensação. Ou não
Victoria Rosell lembra o momento em que a vítima renunciou à ação civil, à indenização que lhe correspondia como direito, e também o momento em que mudou de ideia:

— Que carga positiva isso tem de tirar o preconceito da 'aproveitadora' de um homem com dinheiro, do estereótipo da 'boa vítima' que causou tanta dor — destaca.

Para que a vítima de Alves pudesse fazer isso, houve primeiro uma alteração na Lei de Processo Penal na Espanha que fez com que a lei do só sim significasse sim:

— Introduzimos um parágrafo [no artigo 112.º] para poder revogar a decisão se, depois de tê-la tomado, você percebe que os acontecimentos são mais graves do que você pensava ou porque você renunciou por causa do relacionamento que tinha com o agressor ou por pressão, que é algo que sabemos que acontece — aponta Victoria Rosell.

Esta compensação faz parte de um dos elementos-chave da lei de liberdade sexual: a reparação das vítimas.

— Isso é fundamental porque implica mais que danos e preconceitos, porque estamos falando também de reparação social, simbólica, de compensação não só por questões físicas ou psicológicas, mas também por questões morais, por lucros cessantes, ou seja, por tudo que as mulheres têm de parar de fazer depois de sofrerem um ataque, por causa de como isso as afeta, como afeta seus estudos ou trabalho — diz Teresa Peramato.

Estereótipos sobre o agressor
Para Altamira Gonzalo, é vital a consciência de que “seja quem for o homem, pode ser o agressor”. Ou seja, poder, fama ou influência social não são elementos de minimização da violência. Dani Alves é ex-jogador do Barcelona, conhecido mundialmente, tem 36,6 milhões de seguidores no Instagram, jogava pela seleção brasileira desde 2006 e é o segundo jogador com mais títulos (como equipe) na História do futebol. Por isso, sublinha Gonzalo, “a mensagem de que todos são tratados igualmente nos tribunais é muito importante, porque legalmente tem que ser assim e porque deve ser transmitido que não ficarão impunes”.

— O que aconteceu com Alves nos permitirá compreender e quebrar aquela violência estereotipada pela qual se acredita que certos homens não podem ser agressores porque 'não precisam estuprar para fazer sexo'. Devemos lembrar repetidamente que o estupro não tem a ver com sexo, mas com poder — ressalta Miguel Lorente.

Como nova lei muda as perguntas ao acusado
A mudança no modelo para "só sim é sim" também causará certas mudanças nas perguntas feitas ao acusado no tribunal. Teresa Peramato explica que, “com todos os direitos processuais dos arguidos garantidos”, como sempre, cabe ao Ministério Público o ônus da prova. Os promotores “terão sempre de provar que o ato sexual foi praticado sem o consentimento da vítima”.

Agora, porém, o trabalho da acusação é provar que não houve consentimento afirmativo. Com isso, o acusado não poderá mais se defender dizendo: 'Sim, eu acreditei nisso'.

— A crença subjetiva não é suficiente. É exigido a qualquer pessoa que, se tiver dúvidas sobre o não consentimento, explore qual é a real vontade da outra pessoa e adote as medidas necessárias para obter o consentimento nas circunstâncias do contexto — destaca Peramato.

Os limites dos interrogatórios
Victoria Rosell lembra que, durante as oitivas, “o presidente do tribunal vai limitar as questões que podem ser questionadas sobre a vida anterior ou íntima ou posterior da vítima". Antes, eram de praxe questões se, após o ataque, a mulher havia retornado à vida normal ou se era alguém com muitos parceiros sexuais, por exemplo.

Isso, agora, passou a ser exceção. Somente questões desse tipo realmente essenciais para o caso serão admitidas, se forem justificadas. Esta limitação deve-se à modificação do artigo 709 da Lei de Processo Penal que criou a Lei da Liberdade Sexual. O texto acrescenta que, se estas perguntas forem feitas, “o presidente [do julgamento] não permitirá que sejam respondidas”.

A mídia e a perseguição social às vítimas
No início do ano, a vítima de Alves relatou a publicação de seus dados pessoais nas redes sociais, incluindo nome completo e idade, por pessoas próximas ao ex-jogador de futebol, incluindo a mãe dele. Rosell lembra que a Lei de Liberdade Sexual também levou em conta esta questão e introduziu outra alteração no artigo 681.

Este artigo estabelece que “é proibida, em qualquer caso, a divulgação ou publicação de informações relacionadas à identidade das vítimas [...] bem como de dados que possam facilitar a sua identificação, direta ou indiretamente, ou daquelas circunstâncias pessoais que foram avaliadas para resolver suas necessidades de proteção; bem como [é proibida] a obtenção, divulgação ou publicação de imagens suas ou de seus familiares”.

O efeito pedagógico
Por vezes, existem questões intangíveis que são essenciais em torno da legislação, porque fazem parte do progresso de uma sociedade e também porque implicam mudanças que são tangíveis. O efeito pedagógico é uma dessas questões, e Miguel Lorente diz que, por vezes, pode ser “quase o mais importante”. Trata-se do aprendizado que a sociedade obtém por meio da aplicação de uma norma sobre um assunto específico.

Neste caso, foi a própria sociedade, o movimento feminista, que promoveu a nova legislação. Ao mesmo tempo, a lei ajuda a difundir e consolidar esta nova compreensão da violência sexual.

"Até agora tem havido uma negação da existência da violência sexual como uma questão estrutural e generalizada e a Liberdade Sexual ajuda a descobri-la", diz Lorente. E, como já aconteceu em outras ocasiões, esse efeito pedagógico é intensificado com o exemplo de um caso único, como o especialista acredita já ter acontecido com o de Daniel Alves.

Do consentimento à credibilidade
Com a nova lei, a Espanha deixou para trás o modelo “não significa não”, que, explica Teresa Peramato, “se baseava na ideia de que a violência só era entendida como violência quando era praticada contra a vontade perceptível da outra pessoa” — isto é, com um “não”, com resistência, física ou verbal.

Mas este modelo não se ajustou à realidade do abuso, ao qual muitas vezes as vítimas não conseguem reagir – na chamada "imobilidade tônica" – ou preferem não fazê-lo por receio de que a situação se agrave. Mesmo assim, e embora o que mais se tratou com a lei tenha sido a ideia de consentimento, Lorente lembra que “o consentimento não é algo novo, já era a base: sem consentimento, era violência”.

Uma das primeiras coisas que a vítima de Alves disse ao responsável pela boate onde ocorreu o ataque e à funcionária que a viu chorando no corredor foi: “Não vou denunciar, porque... Quem vai acreditar em mim?”. E é justamente nisso, na credibilidade, onde Lorente aponta estar a diferença:

— [A diferença está] Na forma de abordar o consentimento, que agora é uma questão de credibilidade. A resposta social feminista foi “irmã, eu acredito em você”. Não se falou em consentimento, não se reivindicou consentimento, mas sim, credibilidade, deixando para trás todo aquele imaginário em que as mulheres dizem ‘não’ quando querem dizer ‘sim’ — ressalta o especialista.

 

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