Golpes no racismo: medalhistas olímpicos destacam avanços no boxe em meio século
Servílio de Oliveira e Hebert Conceição comentaram luta dentro e fora dos ringues
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Um intervalo de 53 anos separa as conquistas olímpicas de Servílio de Oliveira — primeiro medalhista do boxe brasileiro, com o bronze na Cidade do México-1968 —, e Hebert Conceição, ouro nos Jogos de Tóquio deste ano. Mas mesmo vivendo épocas diferentes, ambos sentiram na pele as dificuldades para se tornar um atleta profissional no Brasil e compartilham pontos de vista, seja sobre boxe, incentivo ao esporte ou o preconceito sofrido, dentro e fora dos ringues.
Em razão do Dia da Consciência Negra, O GLOBO proporcionou o primeiro encontro entre os dois — mesmo que apenas virtualmente, por causa da pandemia. Em bate-papo por vídeo, Servílio e Hebert se conheceram, falaram sobre avanços e o que ainda precisa melhorar em uma modalidade cujas glórias foram construídas essencialmente graças a jabs e diretos de lutadores pretos.
— Vejo com muita positividade a ascensão da figura do negro na mídia. Até porque a gente sabe o quanto tudo pra gente é mais difícil. Já somos olhados com diferença e, só pelo olhar, nos diminuem — conta Hebert. — No boxe brasileiro, o convívio é um pouco melhor, porque vivemos majoritariamente com pessoas negras. Mas, em algumas viagens e em interações com outras modalidades, sentimos diferença de olhares, até de outros atletas. Não só por ser negro, mas por ser negro e ser do boxe.
O baiano foi recebido com festa em Salvador em agosto e tem dividido a rotina de treinos com entrevistas. Situação diferente da vivida por Servílio há meio século:
— Lá no México, o pessoal da delegação foi me ver lutar. Mas na volta, aqui no Brasil, não teve recepção, não. Eram outros tempos —lembra o ex-pugilista, aos 73 anos — Hoje em dia, a coisa é mais divulgada. Penso que nossa modalidade não recebe o respeito que devia merecer, o boxe sempre foi o primo pobre dos demais esportes.
A glória dos boxeadores negros brasileiros vem até antes mesmo de Servílio, com nomes como Waldemiro Pinto e Abrahão de Souza, que lutaram pelo país no Pan de Chicago-1959.
Depois da conquista nos Jogos da Cidade do México, houve um intervalo de 44 anos até que o Brasil voltasse a ter um medalhista na modalidade. Foi só em Londres-2012, que o boxe subiu ao pódio novamente, com Esquiva e Yamaguchi Falcão e Adriana Araújo. Na Rio-2016, o primeiro ouro, com Robson Conceição — todos pretos. E agora, em Tóquio, além de Hebert, foram ao pódio Bia Ferreira (prata) e Abner Teixeira (bronze).
— Acho que a aparição de atletas negros é uma maneira de a gente poder estar mostrando que nós, negros, somos iguais. No Brasil, o racismo sempre foi evidente, mas, agora, as coisas estão mudando. Conseguimos mostrar a coisa in loco, ao vivo, podemos filmar alguém nos descriminando, algo com que poderemos enquadrar alguém criminalmente na Justiça — destaca Servilio. — Vi uma pesquisa que mostrava a falta de ascensão dos negros e como as balas perdidas sempre se perdem nos negros. Acho que isso tem que mudar. Nós também podemos, não nos falta capacidade, mas sim oportunidade.
Funcionário de uma sede mineira da Pirelli, produtora de pneus, durante os anos 1960, Servílio se tornou atleta graças a uma prática das empresas à época, que investiam em departamentos de esportes, mandando funcionários para competições para divulgar a marca.
— Não havia verba governamental, como hoje tem lei de incentivo, Bolsa Atleta, Bolsa Pódio. Eu chegava às 6h da manhã no clube, pulava o muro, corria quatro quilômetros e ia para fábrica trabalhar, até às 17h.
Hebert, por sua vez, colhe os frutos de uma jornada diferente e, ao mesmo tempo, semelhante. Neste sábado (21), irá receber o Troféu Raça Negra; na última quarta-feira, se tornou embaixador do Bahia, clube do coração, e, na semana anterior, foi eleito o melhor atleta do boxe olímpico pelo COB. O baiano de 23 anos, que fez história ao nocautear o rival ucraniano em Tóquio, não teve um caminho fácil, mas, avalia ele, menos complicada do que o de Servílio.
Recentemente, o ex-boxeador venceu outra luta. O nome de Servílio era um dos 27 que figurava na lista de personalidades negras da Fundação Palmares, e estava na leva que foi retirada em dezembro, a pedido do presidente da entidade, Sérgio Camargo. A justificativa era que apenas devia compor a homenagem figura já mortas.
Também advogado — se formou em 2015 —, Servílio levou o caso à Justiça, pedindo, além do restabelecimento do nome na lista, indenização por danos morais. Ele chegou a ganhar o primeiro round, quando, em maio, a 3ª Vara Federal de Santo André decidiu que o legado fosse reintegrando, além de indenização em R$ 10 mil ao medalhista. Porém, o processo ainda corre, já que, em julho, a Fundação apelou.
Paralelo a isso, em outubro, a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados aprovou o projeto do Senado Federal, que suspendia as ações da portaria criada por Camargo. Atualmente, a proposta é analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania antes de seguir para o Plenário; sendo aprovado, os nomes voltam a constituir a lista.