Machismo na infância é combustível, diz Formiga antes de sétima Olimpíada
"Me chamavam de mulher macho, que daqui a pouco eu ia estar roubando", relata a atleta
Aos 43, Formiga se prepara para embarcar rumo à sua sétima Olimpíada. Mais que a longevidade, o que surpreende é a forma como a meio-campista encara uma nova participação nos Jogos. "Como se estivesse indo para a primeira", diz Formiga à reportagem, por videoconferência, no estádio do Morumbi, e de máscara -precauções necessárias para que uma possível infecção com a Covid-19 não signifique um adeus a Tóquio-2020.
"Preciso controlar essa minha ansiedade e esse frio na barriga. Se não tiver esse friozinho é porque acabou a chama."
No Japão, a jogadora se juntará a Robert Scheidt como os brasileiros com mais participações olímpicas. Formiga busca um inédito ouro, agora sob o comando da técnica Pia Sundhage, que levou os Estados Unidos à conquista de duas medalhas douradas e a Suécia a um bronze.
Além da ansiedade com sua sétima edição dos Jogos, ela diz que representará em Tóquio a ex-companheira Cristiane, que não foi convocada, e o ex-técnico Vadão, que morreu em 2020 e foi decisivo para o retorno da meia à seleção.
A jogadora, que vai reforçar o São Paulo depois dos Jogos, também conta quais foram as suas motivações para virar profissional e seguir até hoje em atividade. O preconceito, foi uma delas.
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"Meus vizinhos falando para minha mãe me tirar do futebol, porque eu não ia dar em nada, que eu ia acabar engravidando rápido, porque eu andava no meio dos meninos, e por aí vai, né? Me chamavam de mulher macho, que daqui a pouco eu ia estar roubando... São coisas que realmente se tornaram um combustível para mim."
PERGUNTA - Formiga, você nasceu em 1978, um ano antes da proibição ao futebol feminino no Brasil acabar. Como foi a sua infância em Salvador e como você começou a jogar bola?
FORMIGA - Comecei com sete anos, na rua, algumas vezes com meus irmãos, outras com amigos. Foi bastante difícil, porque quando eu jogava com meus irmãos, eu não apanhava, mas quando eu jogava sem, apanhava. Começava a apanhar desde o campo até dentro de casa. Hoje eu dou risada, mas foi difícil.
Acho que já nasci com esse dom, porque a minha mãe falava que todas as bonecas que eu ganhava, eu arrancava a cabeça e fazia de bola. Meus irmãos ganhavam bola e eu chorava porque eu queria também. Não aceitavam, diziam que era 'coisa de homem'. Tive que enfrentar esse baita preconceito dentro de casa, o verdadeiro machismo. Muitos vizinhos criticavam por eu ser a única mulher no meio dos meninos e isso incomodava muito meus irmãos. Mas minha mãe sempre me deu apoio.
Você se sente um símbolo dessa trajetória feminina que conquistou o direito de jogar bola?
FORMIGA - Posso dizer que sim, por dar continuidade no trabalho daquelas que não puderam [jogar] por conta da proibição. Alguém tinha que insistir para o futebol feminino ter a sua chance, né? Não só no Brasil, acho que no mundo inteiro. Sou muito grata a elas [que vieram antes] por terem suportado muita coisa, por me dar essa chance. Li muitas histórias, não vivenciei a situação, mas sei que foi difícil. Então, me sinto assim, e não por ego. Mas por tudo que elas passaram. Muita gente não sabe realmente o que aconteceu com o futebol feminino lá atrás, acho que até essas meninas de hoje, as jovens, precisam ter o conhecimento do que as meninas lá atrás sofreram, para que possam ter responsabilidade.
Você jogou no São Paulo no fim da década de 1990 e foi campeã paulista e nacional. Por que decidiu retornar agora ao clube?
FORMIGA - Não imaginava ficar no PSG por quatro anos, mas com a questão da pandemia, minha mãe longe... E eu vi que o futebol feminino no Brasil está evoluindo. E de longe a gente até consegue ajudar com alguma coisa, mas estando presente, ainda mais. Acho que aos poucos a gente vai ter essa segurança para que todas possam estar perto de sua família, das pessoas que gostam, do nosso torcedor. Muita gente torce pelo futebol feminino, e a gente que está lá fora quer sentir esse calor no país.
Qual a importância do Vadão na sua carreira?
FORMIGA - Eu tinha ele como pai. Todo mundo sabe o carinho, o amor que eu tinha por ele. Me lembro que a última vez, em Campinas, na casa dele, ele falou que eu tinha muito o que contribuir com o futebol feminino fora das quatro linhas. Foi um cara fantástico, não só como treinador, mas como ser humano, amigo, quase um pai. Muitos criticaram ele, mas todos nós temos uma parcela de culpa com o que aconteceu com a seleção na época, a gente vivia perdendo. Massacraram ele e isso me doeu. Essa minha volta para a seleção eu só devo a ele, porque foi um cara que acreditou que eu poderia ajudar a seleção, porque eu mesmo não estava com vontade de voltar por tantas injustiças com o futebol feminino no nosso país.
Você encara essa Olimpíada como uma espécie de homenagem a ele?
FORMIGA - Sim. Já tinha pensado nisso, ele foi um cara muito importante para nós. No meu coração, ele está junto. Se a gente ganhar essa medalha, ele vai ser uma das pessoas homenageadas por mim.
Depois do Vadão, veio a Pia Sundhage, que já tem dois ouros e uma prata em Jogos. Qual o grande mérito do trabalho dela na seleção brasileira?
FORMIGA - Hoje nossa defesa se comporta bem melhor, nosso meio de campo joga junto, mesmo a gente tendo liberdade de movimentação. Isso é uma coisa que ela não tirou da gente, pelo contrário, ela fala que a gente tem que ser ousada, sim, mas com um pouco mais de disciplina tática. Ela fez uma mistura, fez com que a gente não perdesse nossa qualidade, mas acrescentou a parte tática que a gente precisa ter. O legal mesmo foi ela chegar e fazer com que a gente continuasse acreditando no nosso futebol, que a gente pode chegar no nível de seleções europeias, que qualidade para isso a gente tem.
Como foi para você ver a Cristiane fora da convocação?
FORMIGA - Fiquei super surpresa, porque a gente sabe da qualidade dela, as adversárias respeitam só de falar o nome Cristiane, maior artilheira da Olimpíada (14 gols no total). Temos que entender os critérios, é coisa particular da treinadora. A gente fica muito triste, mas estive com ela. Eu e a Cristiane temos o mesmo pensamento, que é de evolução do futebol feminino no país. A gente sabe a importância de ganhar esse ouro, o quanto isso pode melhorar a modalidade. Falei para ela: "Estou indo, mas pode ter certeza que eu estarei brigando por você".
As jogadoras da seleção optaram por entrar com uma faixa contra o assédio sexual após as denúncias contra o presidente da CBF, Rogério Caboclo, enquanto o time masculino não mencionou o caso. Como que vocês receberam essa notícia?
FORMIGA - Nós, mulheres, somos contra qualquer assédio. Eu particularmente fiquei assustada porque eu não imaginava que poderia acontecer isso com ele. Até porque é um presidente que entrou na CBF e ajudou muito o futebol feminino. Eu vinha falando que ele mudou muitas coisas realmente, deu apoio digno de uma seleção que vai para uma Olimpíada. Então, eu me assustei. Espero que tudo seja resolvido e quem tiver de pagar, que pague.
Em 2020, após o adiamento, você disse que estava se sentindo bem para disputar os Jogos. Agora que fez 43, como você está, às vésperas da sua sétima Olimpíada?
FORMIGA - Estou bem tranquila e ansiosa para que comece logo. Preciso controlar essa minha ansiedade e esse frio na barriga, que é normal. Se não tiver esse friozinho é porque acabou a chama. Estou tomando todas as precauções porque faltam poucos dias e a gente não pode relaxar. Se pegar Covid, não participa. A minha preocupação maior é em relação a isso.
Esse frio na barriga de agora, ele é diferente ou é igual aos outros?
FORMIGA - Como se estivesse indo para a primeira [Olimpíada]. A gente sabe da responsabilidade, o quão importante é essa medalha. Bateu na trave no Rio de Janeiro, dentro de casa. Na minha primeira Olimpíada, mesmo não tendo essa visibilidade que tem hoje, só o fato de você saber que está indo para uma Olimpíada, representando milhares de brasileiras, a sua família, deu um frio na barriga. E como eu falei, se você for para uma competição dessa e não sentir, é porque não faz sentido.
Sabemos que você não aguenta mais ser questionada sobre o dia em que você vai parar. Então, não vamos falar sobre isso. Mas, no dia em que você parar, tem ideia do que você vai fazer?
FORMIGA - De primeira, eu pensava em ser treinadora. Ainda penso. Também fazer o curso da CBF. E tem a parte também de gestão, né? Eu tenho que descobrir onde vou me encaixar. Pretendo fazer cursos e vamos ver no que vai dar. O meu desejo, e espero que dê tudo certo, é que eu possa continuar ajudando o futebol feminino, porque fora do esporte eu não me vejo.
O que te motiva a seguir jogando?
FORMIGA - Principalmente as críticas. Meus vizinhos falando para minha mãe me tirar do futebol, porque eu não ia dar em nada, que eu ia acabar engravidando rápido, porque eu andava no meio dos meninos, e por aí vai. Essas coisas, me chamavam de mulher macho, que daqui a pouco eu ia estar roubando... São coisas que realmente se tornaram um combustível para mim, sabe? Ir lá e mostrar para as pessoas que eu não estava errada no que eu queria. E graças a Deus minha mãe não deu ouvidos a essas pessoas e continua me dando força. Às vezes é melhor me dar um tapa ou um chute na canela do que soltar esse tipo de palavras, que machucam bastante. Eu guardo isso, e a minha resposta está aí para essas pessoas.