Ministério dos Direitos Humanos quer levar a imagem de Stuart Angel de volta ao Flamengo
Remador se escondeu na garagem de barcos do clube antes de ser preso e torturado pela ditadura militar, em 1971; peças do memorial inaugurado em 2010 estão desaparecidas
Encurralado pelas forças da ditadura, Stuart Edgard Angel Jones passou três dias escondido na garagem de barcos do Flamengo, na Lagoa Rodrigo de Freitas, antes de cair na clandestinidade, no início dos anos 1970. Na mesma sede, ele havia subido ao pódio, anos antes, para receber o título de bicampeão carioca na categoria “oito”. Mas o que fez Stuart entrar para a História é um episódio triste e violento: ele desapareceu, em maio de 1971, após ter sido preso e torturado na Base Aérea do Galeão.
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Levar a imagem de Stuart de volta ao Flamengo é o objetivo do programa “Lugares de Memória”, conduzido pelo Ministério dos Direitos Humanos. A primeira tentativa foi feita em 2010, quando a mesma pasta promoveu a instalação de um memorial em homenagem ao ex-remador na sede náutica do Flamengo, na Lagoa, a poucos metros de onde Stuart se escondera da repressão. A placa de bronze e a escultura que o sustentava, contudo, estão desaparecidas desde a ocasião dos Jogos Olímpicos de 2016. As peças teriam sido removidas para adequar o espaço às provas de remo e canoagem do evento.
O Ministério Público Federal (MPF), acionado pelo Grupo Tortura Nunca Mais, abriu uma “notícia de fato”, no âmbito da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, para iniciar uma investigação sobre o paradeiro do material. Ao mesmo tempo, o Ministério dos Direitos Humanos, representado pelo assessor especial de Memória e Verdade, Nilmário Miranda, mandou um ofício à direção do Flamengo perguntando pelas duas peças. Caso não sejam localizadas, um movimento de torcedores do clube, “Flamengo da Gente”, se dispôs a fazer uma campanha de arrecadação de recursos para um novo memorial.
— O memorial materializa a memória da luta de atletas e torcida do Flamengo contra a ditadura daquele período, e, de forma mais ampla, simboliza a resistência do esporte contra o autoritarismo — disse Guilherme Jorge, coordenador do movimento.
Como militante do MR-8, grupo armado de resistência ao regime militar, Stuart foi duramente torturado, após ser preso, porque os agentes da repressão acreditavam que o então remador soubesse do paradeiro do capitão do Exército Carlos Lamarca, apontado como um dos principais inimigos da ditadura. De acordo com outro preso, Alex Polari, Stuart, além de ser espancado, foi amarrado em um jipe militar, com a boca próxima ao cano de descarga, e arrastado pelo pátio da unidade militar, inalando gás carbônico.
O corpo de Stuart nunca foi localizado. Somente em setembro de 2019, a morte do ex-remador foi inscrita em seu atestado de óbito como “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistêmica e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.
No Flamengo, Stuart era voga, o primeiro dos oito remadores da equipe, que geralmente determina o ritmo das remadas. Filho da estilista Zuzu Angel, era querido entre atletas e funcionários. Certa vez, o lendário técnico Guilherme Augusto do Eirado Silva, o Buck, ligou de madrugada para o então diretor de Remo do clube, Getúlio Brasil Nunes, pedindo que se dirigisse para a sede de remo, porque o assunto era “muito sério”.
— Chegando lá, nos fundos da garagem, encontrei o Stuart escondido. Buck, que tinha simpatia pela esquerda, o acolheu. Para remar no skiff (barco individual), ele usava um gorro e óculos. Os outros remadores não sabiam. Não ficou mais de três dias. Depois que saiu, só soube dele pela notícia do desaparecimento — recorda-se Getúlio.
No ofício ao MPF, o Tortura Nunca Mais mencionou que, após o desaparecimento, Zuzu Angel “procurou o filho infatigavelmente, abordando autoridades nacionais e internacionais e concedendo entrevistas a quantos veículos de imprensa tivessem a coragem de publicá-las”. Conseguiu fazer chegar a denúncia ao então senador Edward Kennedy, que levou o caso à tribuna do Senado americano. Pessoalmente, ela entregou ao secretário de Estado Henry Kissinger, em visita ao Brasil em fevereiro de 1976, uma carta com a denúncia e um exemplar de um livro onde era relatada a morte do filho.
Em dezembro de 2010, no âmbito do programa “Lugares de Memória”, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Governo Lula (2003-2010), inaugurou o memorial na sede náutica do Flamengo. Na época, a então presidente do Flamengo, Patrícia Amorim, lembrou do exemplo corajoso daqueles que abrigaram Stuart na garagem do Flamengo, “onde tudo acontece”. O então secretário nacional, Paulo Vanucchi, representou o governo. Remadores do clube chegaram a aprumar os remos em homenagem ao colega desaparecido.
Depois que o memorial desapareceu, Stuart voltou a ser lembrado na entrada da sede náutica em 31 de março de 2019, por integrantes do “Flamengo da Gente”, em protesto contra o então presidente Jair Bolsonaro, que ameaçava nos dias anteriores promover eventos públicos em homenagem ao aniversário do regime militar. A diretoria do Flamengo, um dia depois, divulgou nota informando que não se posicionaria em temas políticos.
A memória de Stuart volta agora com a mudança de governo e a retomada do programa “Lugares de Memória”, que já conta 40 espaços espalhados pelo Brasil. Ainda na campanha eleitoral, ao saber que a primeira-dama Janja era torcedora rubro-negra, o “Flamengo da Frente” entregou-lhe uma camiseta do movimento e pediu o seu apoio de reinauguração do memorial na sede de remo.
O assessor especial Nilmário Miranda, em contato com ex-dirigentes da Autoridade Olímpica, já constatou que o memorial não se encontra na relação de bens retirados e guardados durante os Jogos. Procurada pelo GLOBO, a diretoria do Flamengo não respondeu se tem conhecimento da localização do memorial.