Os desafios e iniciativas para preservar a memória de ídolos "analógicos" na era digital
Dois anos após sua morte, Rei ganhou ainda mais espaço na Vila Belmiro. Pesquisador do Museu do Futebol fala sobre importância de busca em acervos
As primeiras transmissões de futebol na televisão brasileira aconteceram em meados da década de 1950. Já a Copa do Mundo passou a ser transmitida no país na edição de 1970, disputada no México. Foi quando, finalmente, o Brasil inteiro pôde ver o último título mundial de um Pelé já com 30 anos, na metade final da carreira.
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O Rei, cuja morte completa dois anos hoje, é um exemplo de craque que teve parte significativa de sua trajetória registrada principalmente pelo rádio e raramente em transmissões televisivas ou filmes e demais peças audiovisuais. Nos últimos anos, em plena era digital, o futebol tem perdido alguns desses craques “analógicos”.
São também os casos do meia Adílio — morto no último dia 5 de agosto e de importância ímpar na vitoriosa década de 1980 do Flamengo — e do ex-jogador e técnico Zagallo, que faleceu em janeiro e deixou escassos registros da época em que era um atleta inovador.
Se hoje, com uma simples busca no Youtube, o torcedor tem acesso a vídeos de todos os gols de um atleta moderno, muitas vezes disponibilizados pelos próprios clubes e ligas, a conservação da memória desses ídolos analógicos é um desafio para instituições e profissionais especializados e até para a sociedade.
Marcel Tonini, pesquisador sênior do Centro de Referência do Futebol Brasileiro do Museu do Futebol, explica que registros dos atletas dessas gerações anteriores estão espalhados em acervos pelo país, muitas vezes de difícil acesso. E chama a atenção para a importância de digitalização desses acervos, geralmente expostos à ação do tempo e a condições de armazenamento.
—Vivemos por muito tempo em cima de documentos escritos, fotográficos, iconográficos, visuais e também audiovisuais. Esses registros estão restritos a determinados acervos. Sejam eles públicos ou privados, da Biblioteca Nacional, por exemplo, de jornais e canais de televisão. No geral, tem-se pouco conhecimento de onde buscar esses documentos — reflete Tonini em conversa com O Globo.
— Talvez de 20 anos para cá, quando nos vimos dependentes de ferramentas de buscas, ficamos quase sem acervo, quase sem documentos para chegar a alguma história que queremos contar. Talvez a gente precise reaprender que pode consultar diversos locais de pesquisa, e isso demanda um tempo que a atualidade muitas vezes não nos permite.
Trabalho de formiguinha
O pesquisador explica que a chegada de ferramentas como o Youtube, que permitem aos usuários compartilhar seus registros, não favorece diretamente o trabalho do museu com atletas desse período.
Isso porque ainda é preciso buscar os detentores originais dos direitos das imagens postadas para negociar seu licenciamento. Os vídeos acabam funcionando mais como referências, principalmente em materiais envolvendo as edições de Copa do Mundo.
Um dos focos do trabalho da instituição, o torneio no qual Zagallo e Pelé construíram alguns dos melhores capítulos de suas carreiras traz uma boa dose de complexidade em termos de acervos audiovisuais:
— Temos poucos registros das primeiras Copas. Não temos de todas as partidas, talvez da final. Até 1950, pelo menos, filmava-se do centro do campo ou atrás de um gol, onde se achava que sairiam mais gols. Então, não temos as filmagens do outro lado do campo. Hoje em dia, com certeza, temos muito mais registros que antigamente.
Novo espaço para o Rei
No último dia 19 de novembro, aniversário do milésimo gol de Pelé, o Santos ampliou as homenagens e o espaço à memória do ídolo. Foi inaugurada a sala Astro Rei dentro do Memorial de Conquistas, o museu do clube na Vila Belmiro.
No local, há uma estátua de silicone em tamanho real do Rei (obra do artista plástico Renato Guedes), fotos históricas como a da formatura de Pelé na faculdade de Educação Física e a de sua chegada à cidade de Santos, além de objetos importantes da carreira, como uma camisa original do clube com o número 10, um uniforme da seleção paulista e o sombrero que ganhou na Copa de 1970.
— Nas paredes, há uma linha do tempo retratando a história do Rei desde 1940 e um vídeo, em tempo integral, com gols e jogadas, além de uma adesivagem que o mostra em momentos diferentes da carreira. No Memorial das Conquistas, também temos um espaço dedicado a ele com vários documentos, fotos e frases ditas sobre o Rei. E ainda um monitor que o exibe ao lado de celebridades e artistas famosos — explica Guilherme Guarche, historiador do Santos, que diz que a estátua é “a mais perfeita” das que homenageiam Pelé.
Neste ano, a cidade de Santos também mudou o nome da Avenida Saldanha da Gama, na orla, para Avenida Rei Pelé.
E a temporada teve outro momento importante para a conservação da memória do futebol nacional. Em novembro, a Cinemateca Brasileira, sediada em São Paulo, anunciou um projeto para recuperação, catalogação e digitalização do acervo do Canal 100, o maior ligado ao futebol no país.
O Canal 100 foi um cinejornal criado pelo cineasta Carlos Niemeyer, em 1957, para exibir curtas da modalidade antes de outros filmes. A iniciativa cobriu o futebol brasileiro (e outros aspectos da sociedade) de 1959 a 1986. Ela foi a responsável, por exemplo, por difundir imagens de Pelé e Garrincha na Copa de 1958, na Suécia.