Silêncio é violência, diz atleta que suspendeu carreira nos EUA para defender causas
Cloud pretende voltar a atuar ainda neste ano, por um time na Itália, e retornar para a WNBA na próxima temporada, em 2021
Natasha Cloud, armadora do Washington Mystics, atual campeão da WNBA (liga feminina de basquete dos EUA), decidiu ficar longe das quadras nesta temporada, o que significa abrir mão do seu salário, para se dedicar à luta contra injustiças sociais.
O campeonato será disputado a partir deste sábado (25) dentro de uma "bolha" esportiva montada na Flórida e se encerrará em outubro, com várias medidas para tentar restringir o contágio do coronavírus. Para Cloud, 28, jogar normalmente e depois dar continuidade às causas que defende não seria uma opção. Ela acredita na força do momento atual de protestos, desencadeados pelo assassinato de George Floyd, homem negro morto após um policial branco pressionar o joelho contra o seu pescoço, em maio, na cidade de Minneapolis.
"Quero estar na linha de frente, junto da comunidade, lado a lado. Para causar um impacto, você tem que estar presente. O que eu quero fazer não dá para ser feito a partir de uma bolha na Flórida", ela afirma à reportagem. A WNBA é considerada uma liga esportiva progressista em comparação aos demais esportes americanos. Fundada em 1996, 50 anos após a NBA, ainda está muito distante do patamar alcançado pela competição masculina (as duas fazem parte da mesma estrutura administrativa) em termos financeiros e de visibilidade.
Houve, no entanto, conquistas recentes para as jogadoras. Em janeiro, os salários das atletas da WNBA aumentaram 53% em relação à convenção coletiva anterior. Além disso, reivindicações sobre licença-maternidade e auxílio para cuidados infantis foram atendidas.
Em tempos normais, a temporada da liga feminina dura menos de cinco meses, enquanto a da NBA chega a nove. Isso força as jogadoras a buscarem outra fonte de renda no restante do ano. O mais comum é que, com salários baixos, joguem no exterior durante as férias, especialmente na Europa e na Ásia, aumentando o risco de lesões. Cloud pretende voltar a atuar ainda neste ano, por um time na Itália, e retornar para a WNBA na próxima temporada, em 2021.
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PERGUNTA - Entre continuar perseguindo seus objetivos profissionais e se dedicar ao ativismo, o que a levou a escolher a segunda opção?
NATASHA CLOUD - Eu estava em conflito comigo mesma. Vindo de uma temporada na qual ganhamos o campeonato, um dos meus melhores anos pessoais... É difícil não estar presente cumprindo meu papel. Mas, para mim, isso é maior do que o basquete, afeta diretamente a minha vida. A qualquer momento, eu posso sair de casa e ser como George Floyd. Eu poderia estar em casa e ser a Breonna Taylor, assassinada com oito tiros nas costas enquanto dormia.
Quero estar na linha de frente, junto da comunidade, lado a lado. Para causar um impacto, você tem que estar presente. O que eu quero fazer não dá para ser feito a partir de uma bolha na Flórida. Eu não conseguiria ter o impacto que quero de lá. Mas não estou me aposentando.
PERGUNTA - Por que aproveitar essa visibilidade em quadra não seria suficiente?
NATASHA CLOUD - Eu apoio 100% minhas irmãs na bolha da Flórida, sei que elas farão ótimas coisas de lá. Dentro do complexo haverá movimentos importantes, em termos de incentivos pela reforma social. Mas eu senti essa necessidade de estar presente nas ruas. Nós já fizemos várias coisas jogando na WNBA, usamos camisetas com mensagens antirracistas, promovemos apagões de imprensa para tratar do controle de armas [quando se recusaram a responder perguntas sobre os jogos].
Acho ótimo ter essas mensagens disseminadas em quadra, porque quem quiser assistir ao basquete vai ter que ver o que estão dizendo, e isso é poderoso por si só. Mas eu quero estar aqui fora advogando ativamente pela comunidade. É muito difícil estar focada em vencer um campeonato dentro e outro fora das quadras.
PERGUNTA - Um texto seu publicado no site "The Player's Tribune" após o assassinato de George Floyd teve grande repercussão. Qual o retorno que você tem recebido?
NATASHA CLOUD - A realidade de que eu poderia ser o George Floyd estava pesando em mim. Por isso tinha tantos sentimentos juntos: raiva, frustração, medo, tristeza. Mas eu consegui ser produtiva e escrever sobre isso, cobrando ações não só dos atletas, mas de todo mundo. Porque não tem mais espaço para ninguém ficar em silêncio. É preciso entender o poder que as nossas vozes têm, não só como atletas, embora ela seja amplificada pelas plataformas que temos, mas compreender que todo dia as pessoas têm vozes poderosas. E dá para mudar muitas coisas simplesmente mudando nossas atitudes.
Se você vir racismo, opressão, denuncie! Fique desconfortável, saia da sua zona de conforto. O artigo foi retribuído com muito amor do mundo inteiro. Foi muito legal ver como ele chegou a tantas pessoas, como vocês aí no Brasil.
PERGUNTA - O que o silêncio significa para você?
NATASHA CLOUD - Silêncio é violência, uma grande ameaça para todos os negros. Se você se cala, é parte do problema. Se você é neutro, está escolhendo o lado do opressor. Não dá mais para esperar. Ficar em silêncio é um joelho no nosso pescoço.
PERGUNTA - A bicampeã olímpica e tetracampeã da WNBA Maya Moore interrompeu, no auge, a carreira em 2019, para ajudar a libertar um homem negro que considerava ter sido preso injustamente. Jonathan Irons foi libertado neste mês, após passar 22 anos encarcerado. Ela serviu de inspiração?
NATASHA CLOUD - Maya Moore é uma lenda, uma campeã dentro e fora de quadra. Eu não consigo fazer jus à grandiosidade dela. A decisão de parar de jogar no auge da carreira para se dedicar ao que ela acreditava... Se você pensar no maior nome do basquete, é Maya Moore.
Ela é super legal comigo desde que eu era uma novata na liga, mas não falamos especificamente sobre esse assunto. Ela está ocupada salvando o mundo [risos]. Maya é uma vencedora por se afastar dessa forma do basquete. Ter um exemplo assim na questão da advocacia social é algo enorme para mim. Não diria que influenciou minha decisão, mas só a presença dela, o exemplo, me ajuda diariamente a lutar por reformas sociais.
PERGUNTA - Como era o ambiente onde você cresceu e como isso a transformou em quem você é?
NATASHA CLOUD - Eu cresci em uma família inteiramente branca, mas nunca fui tratada de um jeito que me fizesse sentir diferente. Por muito tempo eu só me via como a "Tash", sem questões ligadas à minha cor. Aí comecei a entender como a sociedade funciona e como, mesmo quando criança, estava sujeita a situações difíceis por causa disso.
Lembro-me de quando tinha 11 anos e fui de bicicleta a um mercado para pegar um lanchinho e algo para beber. Eu estava com meus cinco amigos, todos brancos, e eu fui a única seguida na loja pelo segurança. Chegando em casa, contei para os meus pais, e eles tiveram que me preparar para como o mundo me enxergaria. Eu sou mestiça, mas a cor da minha pele é preta e sou vista como ameaça, como alguém inferior. Por eu ser parte da comunidade LGBTQ+ eu sou vista como menos ainda. Minha família fez um ótimo trabalho em me preparar para o mundo, eu sou abençoada por ter a base que tenho. Mas foi difícil entender quem eu era, como uma criança de raças misturadas, porque eu não sou branca o suficiente, não sou negra o suficiente. Fico nessa área cinzenta e precisei descobrir sozinha quem eu realmente era.
PERGUNTA - Nesse processo de autoconhecimento, como você encontrou sua voz?
NATASHA CLOUD - Achei minha voz três anos atrás, me identificando como uma mulher negra. Eu tenho orgulho de ser tudo que sou, de saber quais são meus valores, no que eu acredito, entender minha vida como uma mulher bissexual. Ficar noiva da minha namorada, que também é uma atleta profissional (Aleshia Ocasio, jogadora de softbol), alguém que me entende, juntar todos os pedaços de mim mesma. Isso me ajudou a encontrar minha própria voz para falar por quem não consegue. Eu não sou perfeita, mas é muito mais fácil passar por esse processo quando internamente você está em ordem.
PERGUNTA - Com as bolhas da WNBA e da NBA, ambas montadas na Flórida, fica evidente a disparidade entre as acomodações das jogadoras e dos jogadores. Isso a decepciona?
NATASHA CLOUD - Dói continuar vendo as disparidades enormes entre as ligas.A masculina está no Wide World of Sports, na Disney, e a feminina está em uma escola [IMG Academy]. Embora seja uma boa escola, dá para ver claramente a diferença enorme entre as duas. As instalações da WNBA não cumprem o padrão da NBA. Nós entendemos que o basquete feminino não gera a mesma renda que o masculino, também que a WNBA é muito mais jovem. É importante dizer que somos extremamente gratas por poder jogar, sustentar nossas famílias, fazer uma carreira. Mas, ao mesmo tempo, não se pode aceitar migalhas se estamos tentando progredir. É preciso desafiar as pessoas, a WNBA, patrocinadores. Afinal, por que não investir nas mulheres? Não há timing melhor do que este, no qual o movimento está em alta.
PERGUNTA - Sua colega de time, atual campeã e melhor jogadora, Elena Delle Donne, teve seu pedido de afastamento médico negado pela liga. Ela sofre com a doença de Lyme [que enfraquece o sistema imunológico] desde 2008 e pode ter complicações maiores caso contraia o coronavírus. Agora, tem que escolher entre não jogar a temporada e abrir mão do salário inteiro ou se arriscar na bolha. O que achou da decisão da WNBA?
NATASHA CLOUD - A decisão diz que os negócios importam mais do que a melhor jogadora da liga. Nós não somos trabalhadores essenciais, isso é algo que as pessoas esquecem. Não somos os heróis da saúde, lutando para manter as pessoas vivas nos hospitais. Trabalhamos com entretenimento. E, sendo assim, somos forçadas a jogar ou ficar sem salário. Foi negociado que quem integrasse o grupo de risco continuaria recebendo mesmo sem atuar. Elena Delle Donne corre esse risco. Eu jogo no mesmo time que ela há três anos. Mesmo antes, eu a via perder jogos por causa de sua condição, a via tomando remédios como se fossem água. Ela toma 64 comprimidos por dia para conseguir jogar em alto nível. Eu sinto como se minha irmã tivesse sido atacada.