Nelson Gonçalves: há cem anos nascia o 'Rei da Boemia'
Centenário de Nelson Gonçalves é celebrado nesta sexta (21); filha do boêmio preserva memória do pai, que ganhará selo comemorativo dos Correios
"As sonoridades iam do pop-rock de 1980 ao axé baiano. Neste entremeio também entravam um 'Naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim' - prontamente acompanhado por todos. Seguido de 'Boemia, aqui me tens de regresso' e de um embriagado 'Não, eu não posso lembrar que te amei. Naaaaão, eu preciso esquecer que sofriiiii', e o setlist do dia, em algum boteco de esquina lá pelas bandas do Agreste pernambucano, estava consolidado. O mais velho da turma tinha 35 anos, contrapondo-se ao que tinha 23. O ano era 2012, mas dia desses e no mesmo botequim, o repertório viria a se repetir".
O depoimento é pessoal. Porque contar histórias é remeter-se, também, a memórias afetivas. Fato atemporal, tal qual é cantar Nelson Gonçalves, que, se vivo estivesse, completaria nesta sexta-feira (21) cem anos (1919-1998). "Meu pai é meio que um cantor hereditário", enfatiza Margareth Gonçalves, filha do "Rei da Boemia".
Leia também:
Festival de música estreia na Malakoff com bandas regionais
Filme de Baco vence prêmio também disputado por Beyoncé e Jay Z; assista
E, convenhamos, é mesmo. Porque, além dos bons ouvidos dos "integrantes daquela turma", havia um "quê" de nostalgia dos tempos em que o cantor gaúcho de Santana do Livramento entrava em nossas casas, via cassetes e vinis que, em vendagem, ficou atrás apenas de outro ícone de nossa música, Roberto Carlos - 100 milhões x 75 milhões.
"Tenho orgulho de constatar que a faixa etária de 35 a 55 anos está entre as primeiras que ouvem o meu pai", comemora Margareth, falando sobre a geração que acessa plataformas digitais em busca de uma das vozes mais saudosas que, da década de 1940 em diante, trouxe maestria a clássicos de Herivelto Martins, David Nasser e Adelino Moreira, alguns dos compositores melodramáticos que tinham suas letras bem encaixadas ao timbre do "cantor de multidões".
"Ele tinha uma voz diferente. Era difícil cantá-lo, pelo tom grave e pela extensão que tinha. Mas insisti e descobri o quanto é bom fazer isso" confessa a pernambucana Cristina Amaral, que, recentemente, trouxe para os palcos "Uma Saudade Chamada Nelson Gonçalves", projeto concebido como forma de celebrar o centenário do "Rei do Rádio". "Considero-o, até hoje, o maior cantor do Brasil", complementa ela, que, antes de enveredar pelo forró e outros gêneros, deu os primeiros passos cantando em bailes e serestas de Sertânia, no Moxotó de Pernambuco, sua cidade natal.
Foi lá, também, que conheceu o ídolo boêmio. "Depois de me apresentar no palco que ele cantaria em seguida, me deparei com ele sentado ao meu lado. Tímida que era, nem me mexi. Mas ele veio e me cumprimentou com muito carinho e simpatia. O momento foi inesquecível", ressalta Cristina, que cresceu ouvindo Ângela Maria, Dalva de Oliveira e, claro, o próprio Nelson, na voz das irmãs.
"Ouvir Nelson é retornar ao ninho"
Bares, cassinos e bordeis, alguns dos cenários mais representativos dos "folhetins a la Nelson Gonçalves", o tanto quanto foram (e ainda são) cotidianos de rodas de amigos e relações entre pais e filhos, por exemplo. "Nelson sempre esteve em minha casa", contou Bárbara Cardoso, 33, jornalista, poeta e crítica cultural olindense, residente na França há pelo menos seis anos.
É por lá que ela conserva lembranças do pai - o médico Severino Francisco Cardoso, falecido em 2004 - incrementadas por memórias permeadas por tangos, boleros e sambas-canção dos vinis do cantor gaúcho levados por sua mãe. "Pedi que ela trouxesse quando veio me visitar, ano passado. Porque ouvir Nelson é retornar ao ninho, à epoca em que fui apresentada às suas canções, por meu pai", complementa.
Ela teve em Nelson uma das referências musicais numa infância e juventude vividas em "uma casa grande e com jardim bonito", que é como ela descreve o ambiente que "vez em sempre" retorna. "Quando durmo, sonho que estou em minha casa em Olinda, e me remeto ao trecho 'Naquela mesa ele contava histórias, que hoje na memória eu guardo e sei de cor'", relembra, mencionando trecho de uma das composições mais marcantes interpretadas por Nelson, "Naquela Mesa", escrita por Sérgio Bittencourt que, à epoca, assim como Bárbara, dedicou ao pai.
Homenagens
Entre as celebrações a Nelson Gonçalves neste centenário, o musical "Nelson Gonçalves O Amor e o Tempo" está em temporada em São Paulo. Já com sotaque pernambucano o espetáculo "Uma Saudade Chamada Nelson Gonçalves", que teve sua estreia em abril no Santa Isabel e seguiu por outros palcos, tendo à frente a cantora Cristina Amaral.
Aos fãs (novos e antigos) do "Rei da Boemia", a Spotify remasterizou mais de uma centena de clássicos de Nelson, disponíveis em coletâneas inclusive. E os Correios lançam em São Paulo, Rio de Janeiro e em Santana do Livramento, Rio Grande do Sul, um selo comemorativo exaltando-o como "A Maior Voz do Brasil".