Comportamento

Hipnose: ciência ou espetáculo?

Descoberta como prática clínica há mais de dois séculos, a hipnose gera controvérsias até hoje. Estudiosos falam sobre o assunto e repórter conta experiência que vivenciou em uma sessão

Hipnose - Leo Malafaia/Folha de Pernambuco

A primeira coisa que chamou atenção quando entramos na sala foi o cheiro dos móveis antigos. Mesa, cadeiras, armário, aparador, eram todos de madeira escura, pesados de carregar, como se tivéssemos voltado ao início do século 20. No centro do teto, pendia um lustre, também de estilo antigo, que, ao ligar o interruptor, se mostrava mais do que suficiente para iluminar o consultório. “Nas sessões, eu só uso essa luminária”, explicou o hipnoterapeuta Reginaldo Rufino, apontando para o objeto ao lado de onde ele se senta. A penumbra, segundo ele, ajuda os pacientes a se sentirem mais confortáveis e seguros.

Na parede ao lado da porta, um banner exibia a “Galeria dos Notáveis da Hipnose”: Franz Anton Mesmer, Jean-Martin Charcot, James Braid, James Esdaile, Dave Elman, Milton Erickson e Fábio Fuentes. Recebia mais destaque um senhor de barba branca e feição séria, que aparecia num grande pôster e num pequeno retrato, com a maior parte do rosto iluminado e a mandíbula e orelha direitas absorvidas pelo fundo escuro. Era o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939). “Sempre quis tirar uma foto assim, mas nunca consegui”, revelou o terapeuta. Tentamos, mas a luminosidade da sala e o branco da parede não permitiram reproduzir o efeito desejado.

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“A hipnose é uma das ferramentas de maior importância porque consegue alcançar resultados que outras técnicas, invasivas ou não, não conseguem”, defendeu Rufino. Por ela, é possível acessar com mais rapidez conteúdos do inconsciente e ajudar no tratamento de dores e doenças psicossomáticas, aquelas que têm origem no psicológico. “No transe hipnótico, você perde parte do controle das emoções, mas não a consciência. Por exemplo, ela pode levá-lo aos dois anos de idade e fazer você lembrar tudo”, afirmou, sem variar o tom de voz, pausadamente. Sentado atrás da câmera, perguntei qual seria a diferença entre o estado de transe e de consciência. “Pela distância não posso afirmar, mas é possível que você já esteja entrando no processo”, disse, na resposta.

Assim começamos a demonstração. Primeiro, me deitei num divã, posicionado de costas para a mesa do terapeuta, aos moldes da psicanálise tradicional. Em seguida, ele tirou do bolso um relógio e começou a balançar. “Não se usa mais isso, mas é só para você acompanhar”, falou e me pediu para levantar a mão esquerda. “Hoje eu só preciso dizer para você olhar um pouco aqui [para a mão]. E você vai ver que seu braço começa a descer. Vai descendo”, comandou. “Quando a sua mão tocar na sua testa, você vai entrar em um sono muito bom”. De repente, o hipnoterapeuta empurrou minha mão para a testa. Em vez de levar um susto, relaxei.

“Seu corpo vai ficando cada vez mais pesado”, foi falando, com calma. Disse para imaginar a reportagem pronta e que eu ficasse tranquilo. Apesar de falar em “sono’’, ouvi tudo o que era dito, mas sem abrir os olhos. Vendo de fora, pode parecer que meu corpo está mole, mas me sinto apenas relaxado. Na mente, projetava as situações que ele propunha: o trabalho concluído, a publicação… “No 3, você vai despertar. 1, voltando à realidade, bem. 2, já sentindo suas pernas. 3, pode abrir os olhos”. Quase me levantei de uma vez. “Não se levante. Respire”, ordenou, puxando para me deitar de novo. Tudo não durou mais que dez minutos.

O consultório fica nos fundos de uma casa, no bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife. Rufino fala que o espaço mais reservado dá mais conforto às pessoas, dando um caráter mais sigiloso ao trabalho. “Tem gente que, quando termina uma sessão, pede para ver se tem alguém na sala de espera. Se tiver, eu peço para ela ir ao banheiro para que o outro possa sair sem ser visto”, revela. Lá uma sessão de 50 minutos custa, em média, R$ 150.



Místico ou científico?
Termo surgido a partir do nome Hypnos, deus grego do sono, a hipnose é até hoje associada ao esoterismo. Segundo Guilherme Raggi, mestre e doutorando em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), isso se deve a diversos fatores históricos. “No século 19, a hipnose teve um boom e depois caiu em desuso para ser retrabalhada por mágicos em shows de ilusionismo. E as pessoas eram estimuladas a fazer coisas incríveis”, conta o pesquisador.

Embora haja relatos de experiências com animais e humanos desde a Antiguidade, o conceito começou a ser desenvolvido por Franz Anton Mesmer (1734-1815), que, pela primeira vez, teria usado a prática como método científico. “É quando sai do misticismo e vem para o tratamento médico. Mas ele [Mesmer] não conseguia distinguir isso e começou a se autopromover como se fosse um dom que ele tinha. Isso só muda no século seguinte”, fala o hipnoterapeuta Reginaldo Rufino, que é presidente da Sociedade de Hipnose do Estado de Pernambuco (Shepe).

Outro aspecto espiritualístico que envolve a hipnose é a ideia de reversão, ou seja, retroceder, por meio do transe hipnótico, a momentos esquecidos do passado e, até, desvendar vidas passadas. “As coisas que você imagina são muito reais, então um problema que pode existir são as falsas memórias”, afirma. Para Rufino, essa questão passa pela crença de cada um. “Não cabe aqui definir se o indivíduo voltou a uma vida passada ou teve acesso a memórias de seus antepassados mantidas nas suas células, as memórias filogenéticas”, diz.

Na literatura científica, não existe uma definição fechada do que é hipnose. “Algumas das definições mais amparadas cientificamente vão na linha de que é um conjunto de técnicas que têm o objetivo de, por meio de processos psicossociais, como sugestão, influência, produzir alterações nas percepções. Há outras perspectivas que vão dizer que é uma alteração de consciência que torna a pessoa mais apta a seguir as sugestões que vêm depois”, explica Raggi. Essa mudança de estado pode ser mais ou menos intensa para algumas pessoas, dependendo da capacidade de concentração e de imaginação.

Independentemente do aspecto espiritual ou ritualístico, o que se sabe é que a hipnose pode trazer benefícios à saúde, contribuindo especialmente para o tratamento de dores e de transtornos de ansiedade. “A dor é uma experiência multifatorial, tem componente sensorial, afetivo, psicossocial, que é o que você entende como dor forte ou fraca. E o que acontece é que a hipnose se relaciona muito com aspectos afetivos e a pessoa consegue experienciar como algo menor do que é”, detalha Raggi. Também pode ajudar em casos de ansiedade, transtorno do pânico e fobias, inclusive em situações específicas, como para quem se prepara para um concurso, por exemplo.



Freud e a psicanálise
A associação com Freud é um ponto controverso quando se pensa na abordagem tradicional da sua metodologia. O professor e psicanalista Pedro Gabriel diz que a prática não é um método terapêutico da psicanálise. “Freud era um cidadão do mundo que não tinha uma nacionalidade definida e, antes de desenvolver a psicanálise, tinha como decisão de vida criar algo novo para a humanidade. Por isso, ele conheceu alguns experimentos e teorias da época, como, entre outras coisas, a hipnose”, conta.

No entanto, a técnica foi descartada enquanto prática psicanalítica. “No início, ele trabalhou com anatomia animal e descobriu a substância usada como princípio para a produção da cocaína. E da mesma forma como ele abandona esses conceitos, Freud abandona a hipnose porque entende que os efeitos dela são temporários e superficiais”, relata. Para o pai da psicanálise, o importante era que o paciente superasse os sintomas psicológicos a partir da fala e da confiança no analista. “O sintoma é como uma cobrança numa carta enviada. Se você não abre e não entende a mensagem, não vai melhorar. Não existe solução mágica”, ressalta.

O hipnoterapeuta Reginaldo Rufino também afirma que a prática não ‘cura’ ninguém. “A cada dez pacientes que ligam marcando uma sessão, querem fazer hipnose. Tenho que ser ético e dizer que a hipnose vai tirar seu sofrimento agora, mas não posso garantir que você não mais padecerá desse sofrimento”, pondera. Apesar disso, o psicanalista Pedro Gabriel descarta qualquer possibilidade de haver uma relação entre os fenômenos hipnóticos e os métodos psicanalíticas. “Não tenho nada contra a hipnose. Se você acredita nela como método terapêutico, não tem problema. Mas não tem nada a ver com psicanálise”, atesta.

Para o pesquisador Guilherme Raggi, apesar de não ser utilizada pelos psicanalistas, a hipnose passou a ser objeto de estudo de vários campos da psicologia. “Há outras perspectivas que ganham força no século 20, principalmente nos Estados Unidos. E a hipnose sofre um desenvolvimento gigantesco na universidade longe dos círculos psicanalíticos. Lá, há diversas divisões, inclusive uma que estuda a hipnose psicológica”, analisa. “A perspectiva mais clínica da psicanálise abandona, mas, para a psicologia mais ampla, continua sendo estudada.”