O brega e o seu poder de embalar amores e sofrências

Em Pernambuco, gênero é consagrado e se tornou, por meio de lei estadual, em 2017, expressão cultural

Clube das Pás é um dos espaços consolidados ao gênero - Arthur de Souza/Folha de Pernambuco

"Mon Amour", encher os pulmões para cantarolar, em alto e bom som, as sofrências do amor, é umas das porções de felicidade mais bem-vindas ao ser humano. Toca aê um Fernando Mendes, depois emenda com Labaredas e chega ao Conde do Brega, acompanhados por umas boas doses de cana e de lágrimas. É claro que a cura, ou pelo menos, o alívio para qualquer coração partido, há de chegar.

É por essas e outras que o brega, enquanto gênero musical, permanece entre os mais celebrados dos alentos, fato que impossibilita deixar à margem a sua importância, desenhada desde os idos das décadas de 1960/1970 com Evaldo Braga, Wladick Soriano e Odair José, entre outros nomes "cafonas" que permanecem como inspiração a outros tantos, até chegar a um Reginaldo Rossi, referência do ritmo para os contemporâneos, que imprimem outras roupagens ao gênero.

"O brega tem uma relação com a música romântica, mas nem toda música romântica é brega e nem todo brega é romântico. É uma parte muito significativa do gênero, porque é muito aderente ao imaginário que se tem sobre ele no Brasil, atrelado que está às canções românticas de dor de cotovelo", explica o professor e pesquisador em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Thiago Soares, autor de "Ninguém é Perfeito e a Vida é Assim: A Música Brega em Pernambuco", livro que traz uma abordagem sobre o gênero no Estado, passando por diversos vieses e aspectos culturais e sociais.

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E é exatamente sob a ótica do social que o brega se mostra sobrecarregado por estigmas. Periférico em sua origem e caracterizado por uma estética que passa longe dos tais "românticos refinados", o ritmo esbarra em preconceitos advindos do próprio meio artístico, quando alguns se valem de que ser brega (na música) significa ser menos. "Brega é um gênero musical que tem uma história, a partir da relação das classes populares com a música romântica. Dessa musicalidade produzida e consumida por pessoas pobres, advém a primeira relação do gênero com uma certa oposição à Jovem Guarda, que teria os ídolos românticos populares.

A ideia do brega como música está atrelada a isso, sendo um termo que tem uma carga forte, muito pejorativa e de construção de diferenças: música ruim e de pobre", complementa Thiago, que deu ao livro título extraído do trecho de uma canção de um dos ícones pernambucanos sobre o assunto, o Conde do Brega. Aos 66 anos e pelo menos vinte "a serviço do brega", Ivanildo Marques da Silva virou "Conde" desde a infância, quando os avós lhe deram a alcunha que o levaria, anos depois, a fincar sua trajetória dentro do gênero em Pernambuco. Lembrado entre dez em cada dez artistas bregueiros, Conde do Brega integra o rol de "cantores das antigas" junto a outros nomes que povoam o cancioneiro local.

Conde do Brega é um dos ícones do gênero em Pernambuco - Crédito: Arthur de Souza/Folha de Pernambuco


"Tenho meu estilo próprio e nunca quis copiar ninguém. Minha voz é inconfundível justamente por ser feia e nem gosto de me ouvir cantar, mas as pessoas dizem que me admiram. Deve ser pelo carisma que isso sei que eu tenho", celebra ele, que tem nove discos gravados, seis coletâneas e quatro DVDs, material que simboliza bem o chamado "brega de antigamente". "Porque é o que as pessoas querem curtir. No último disco, regravei canções do Alípio Martins e do Maurício Reis e é esse o brega que tem qualidade, são artistas com talento e conteúdo para ver e ouvir", opina.



'Brega das antigas x jovialização do brega'


O Conde pode até ter suas razões, justificadas, inclusive, por sua consolidação no gênero - que se tornou expressão cultural de Pernambuco (Lei 16044/2017). Assim como ele, nomes como Augusto César, Adilson Ramos e integrantes das bandas Camelô e Rossi (A Original), defendem o romantismo que exalta o amor e outros tantos sentimentos que o cercam e que não necessariamente descambam para decantar o corpo, sexualizando letras e melodias.



"Eu me coloco como um cantor romântico de verdade. Podem ver todas as minhas canções, do início ao final, falam ao coração, com mensagens de saudade, recordação e de amor puro, então eu me julgo como um cantor romântico realmente que canta o amor", ressalta um dos ídolos locais mais cortejados, que complementa: "Acho que hoje caiu muito a qualidade das músicas, até têm algumas bonitas, mas hoje se canta mais cama e menos o amor".



Uma "ausência de amor e predominância de corpo" que aparece em hits cantados, por exemplo, pela dupla Shevchenko e Elloco. Do fato decorrem alguns entraves entre os que defendem a supremacia do romantismo no gênero que não deveria, inclusive, somar "parcerias" de outros ritmos. "Ou é brega ou é funk. E a música brega para a banda é a forma de tentar falar de amor, de maneira mais profunda, desse sentimento. Isso para nós é o brega, é o que ele traduz para nós", argumenta Luizinho Vilar, à frente da produção de um dos grupos veteranos do ramo, a Banda Camelô.



Já para o professor Thiago Soares, essa é a parte controversa do brega-funk, o "falar sobre sexualidade" que, de acordo com ele, não se diferencia tanto quando o mesmo tema é trazido por outros ritmos da música. "O desejo e as questões de ordem mais corporal do brega-funk não se diferenciam tanto de canções que historicamente foram construídas assim. Em relação ao forró, ele também era visto como uma música que se dançava junto e ralava no corpo do outro. Canções populares e corporais sempre serão atreladas a relações e leituras morais.



Uma discussão interessante de ser colocada é o fato da música ser cantada por gente pobre, isso acentua a moralidade sobre esse tipo de expressão e quando julgamos excessiva essa sexualização, há um atravessamento de classe e de raça", explica.



Palco para o antigo e para o atual


O "templo do brega e da música romântica" no Recife, o centenário Clube das Pás, localizado no bairro de Campo Grande, desde sempre abriu as portas para cancioneiros dos gêneros. Comumente lotado de público mais conservador (exigente) em relação ao que "pode ser levado para o palco", o espaço não abre mão de apresentações genuinamente voltadas para sofrências de amor, ora embaladas por nomes "das antigas", ora por mais "moderninhos". De Agnaldo Timóteo a Roberta Miranda e Elymar Santos, como atrações nacionais, a veteranos locais como Kelvis Duran e o saudoso Reginaldo Rossi.



"Dia desses, trouxemos o arrocha e foi sucesso, mas já tentamos implementar forró e não deu certo", conta Jaques Cerqueira, em conversa com a Folha de Pernambuco, representando o presidente da casa, Rinaldo Lima. "É um lugar que acolhe os estilos brega, romântico e apaixonado e, vale dizer, o que se vê por aqui é um público misto, com jovens que vêm dançar e assistir aos shows", exalta Augusto César, um dos bregueiros-românticos mais populares.



Diva do brega


Com uma mala verde de rodinhas e com corações em alto relevo, a cantora Michelle Melo chegou ao Clube das Pás. Suficientemente exuberante, ainda assim, ela se apressou em trocar pelo figurino que carregava no interior da mala. Tomada por brilhos e bota de cano alto, ela estava pronta para fazer, literalmente, caras e bocas para as câmeras. Em conversa com a Folha de Pernambuco, ela fez questão de exaltar o brega, com o qual ela ganhou notoriedade ainda nos anos 2000, à frente da Banda Metade, ocasião em que imprimiu letras de duplo sentindo, cantadas sob sussurros.





Cantora Michelle Melo é tratada como 'diva do brega' - Crédito: Arthur de Souza/Folha de Pernambuco

"A partir do momento em que a população evoluiu para certos tipos de palavreados e teve uma maior liberdade sexual, letras de música também evoluíram", justificou ela, que seguiu discorrendo sobre o gênero musical.

O brega como movimento de periferia
Gosto de tratar o brega como um grito da periferia, que tem dialeto próprio e bem pernambucano. Porque a intenção do brega não é se modificar para se adequar ao mercado, o mercado é que tem de aceitar o brega dentro do que ele é, dentro do dia a dia das comunidades. Augusto César, um dos grandes representantes, canta: “vou escalar todo o seu corpo”. A gente não quer falar escalar, a gente quer falar subir. Buscamos a essência da simplicidade do brega.

Ritmos bregas
O brega-funk e o tecno-brega são alguns dos ritmos do brega, que não temos como especificar como sendo isso ou aquilo. Acho que se nasceu no gueto, na periferia, e teve a coragem de fazer e acontecer sem ajuda, já pode se considerar brega. É um grito dessa gente que tem o direito de brilhar dentro da sua simplicidade.

Sexualização do brega
Eu poderia até, para facilitar o meu lado, dizer que isso é verdade, mas, sinceramente, Falar da sexualização do brega é hipocrisia, porque não é só ele que faz isso. Quando se entra no YouTube, por exemplo, têm dialetos bem mais agressivos e com menos pudor. E a população evoluiu para certos tipos de palavreados, além do que a periferia não segue nem tenta ser outra coisa.

Brega e o duplo sentido
É mais fácil mesmo botar para estourar o lance do duplo sentido nas músicas. E é maldade nossa falar que essas pessoas fazem músicas porque querem ou por não terem educação. Na realidade, elas acompanham a evolução da mídia em geral.

Brega é da "classe A"
Quem mais consome o brega são as classes mais altas, muito mais do que as baixas, tendo em vista que, parte dos meus shows, por exemplo, são em eventos que têm notoriedade social. O brega invadiu esses consumidores, embora sua essência permaneça saindo da periferia. Inclusive, muitos dos que produzem músicas não querem deixar suas comunidades. É realidade a reforma das suas casas, mas as pessoas permanecem nelas e esse é o diferencial do brega, que não se envergonha de ser das comunidades.