Todo poder a Lia de Itamaracá

A cirandeira vive, neste ano de 2019, marcos importantes da carreira, ganhando ainda mais dimensão a níveis nacional e internacional: um reconhecimento que vem tardio, mas finalmente chega para coroá-la

Em meio a uma agenda atribulada, Lia desfruta a paz de sua casa em Itamaracá - Arthur de Souza/Folha de Pernambuco

"Agora estou colhendo o que plantei no passado". A fala de Lia, acompanhada de um olhar penetrante e um sorriso sutil, resume o sucesso que tem alcançado nos últimos meses. Quis o destino que, por coincidência ou não, a Folha de Pernambuco tenha voltado à Praia de Jaguaribe, em Itamaracá, para conversar com a cantora exatamente um ano após ter feito uma matéria especial sobre ela, em que se queixava da falta de reconhecimento em sua terra natal e mostrava sua ascensão em todo o País. Os problemas em Itamaracá não mudaram, embora a população continue aclamando-a como diva local. Mas a glória de Lia surpreende pela aparente rapidez - embora ela faça questão de frisar que as sementes desse sucesso foram plantadas desde o início dos anos 1970, quando sua carreira começou.

Esta sexta (08) foi um dia especialmente feliz para a artista: lançou "Ciranda sem fim", seu quarto disco. Depois de "A rainha da ciranda" (1977), "Eu sou Lia" (2000) e "Ciranda de Ritmos" (2008), ela estava há mais de uma década sem entrar em estúdio. "Tem uma média de uns oito anos entre um disco e outro, por causa da dificuldade de conseguir verba para gravar", detalha.

Este último, porém, é especial. Foi realizado com verba fornecida pela empresa Natura, dentro de um edital que recebeu 2.617 inscrições de todo o Brasil. A produção ficou a cargo de Helder Aragão de Melo, o DJ Dolores, e o resultado mescla respeito às raízes cirandeiras de Lia e um frescor inusitado ao incluir outros ritmos nas 11 faixas do disco, resgatando músicas que fazem parte do bem-querer da cantora e apresentando composições de autores contemporâneos, como Chico César e Lúcio Sanfilippo.

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A primeira audição do disco ocorreu no Pátio de São Pedro, centro do Recife, nesta sexta (8), com coquetel, exposição, roda de ciranda e show da DJ Pax e do DJ Dolores. Já no próximo dia 16, durante o festival Coquetel Molotov, haverá o primeiro show ao vivo, trazendo o repertório do álbum. A ideia é que ainda neste mês, em datas a confirmar, ela realize shows no Pátio de São Pedro e na Praia de Jaguaribe, em Itamaracá, em seu Centro Cultural Estrela de Lia.

Apenas dois músicos da antiga banda foram mantidos: seu marido, Antônio Januário, o Toinho, e Ganga. Nomes de destaque na cena musical pernambucana, como o percussionista Lucas dos Prazeres e o guitarrista Yuri Queiroga, entre vários outros, acompanham a cantora em suas novas incursões musicais. "A princípio, ela ficou temerosa, mas depois entendeu que nada a impedia de visitar outros ritmos. Dolores é um gentleman, foi carinhoso e respeitoso com ela. Lia participou de todo o processo de seleção do repertório, a maioria são músicas que já faziam parte do dia a dia dela, como 'O relógio'. Acho que este disco ficou mais pop. É dançante, é pra cima. Ficou a cara dela, e vai ajudá-la a atingir novos públicos", avalia Beto Hees, que é produtor da artista há mais de duas décadas.
A agenda de novembro está carregada. Após o show no Pátio de São Pedro, e antes do show em Itamaracá, ela vai ao Rio de Janeiro receber uma homenagem no festival Black 2 Black, no dia 23, e a Campina Grande, na Paraíba, participar de um encontro de música de raiz no Sesc local. O ano inteiro foi de muitas viagens, especialmente ao Sudeste. Mas Lia não reclama. "É puxado, vida de artista cansa, mas é o que eu quero e gosto", declara ela, sorrindo, do alto de seus 75 anos. "Não vou parar agora que a carreira está caminhando, que estou vendo as coisas acontecerem", resume.

Ela não exagera: em 2019, ela recebeu um título de Doutora Honoris Causa pela UFPE, por conta de sua importância e saber dentro da Cultura Popular; foi a homenageada do Galo da Madrugada, do Homem da Meia Noite e da Feira Internacional de Artesanato de Pernambuco (Fenearte), que, neste ano, destacou a Ciranda; inspirou uma coleção de moda praia da empresa Rush, com tecidos, maiôs, cangas, bolsas e uma série de outros objetos trazendo sua figura ou imagens a ela relacionadas; vai batizar com seu nome um palco permanente na célebra casa de shows Rio Cenário, no Rio de Janeiro; e deu entrevistas para o Fantástico, o programa de Pedro Bial, o GNT, o CNT, o Canal Brasil e documentários de várias outras produtoras.

Estrela em várias dimensões

Em dois anos, foram lançados dois livros contando sua história: um de fotografias e outro de reportagem, ambos escritos por Marcelo Henrique Andrade. No momento, a Companhia Editora de Pernambuco prepara sua biografia oficial, a ser lançada na coleção Perfis e escrita pela jornalista Michelle Assumpção.

"A literatura tem sido uma vertente nova e muito interessante, que está permitindo que Lia se apresente em um novo circuito, percorrendo feiras e festivais literários", aponta o produtor Beto Hees. "Estou tão orgulhoso, é tanto tempo brigando por isso. Hoje a gente vê Lia sendo reconhecida e se integrando a muitas linguagens artísticas, à música, à dança, à literatura e até ao cinema", diz Beto, emocionado.
O fato de Lia ter participado de "Bacurau", dos cineastas Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (um dos filmes mais emblemáticos, controversos e premiados dos últimos tempos), deu destaque à sua carreira como atriz esporádica. Poucos sabem, mas, além de ter feito uma participação especial em "Recife Frio" (2009), também dirigido por Kleber, a cantora acumula inserções em obras como "Parahyba Mulher Macho" (1983), de Tizuka Yamazaki, e "Sangue Azul" (2015), de Lírio Ferreira. Na tevê, integrou o elenco de "Riacho Doce" (1990) e "Memorial de Maria Moura" (1994). Mas a aparição em "Bacurau" foi a que chamou mais a atenção do público. "Em todo canto que eu vou, as pessoas falam", dá risada. Ela realmente parece estar curtindo a aura de celebridade. "É muito bom receber o reconhecimento por meu trabalho", afirma, sem falsa modéstia.
Descaso e incerteza em sua terra natal
"Lia nunca foi tão assediada. As pessoas param o tempo todo para perguntar quando haverá eventos aqui, em Itamaracá. Mas nunca há convites", lamenta Beto Hees. Ele frisa que a artista "leva exaustivamente o nome de Itamaracá para o mundo", mas que o governo local não dá importância a Lia, o principal ícone da ilha. Inclusive, a matéria de denúncia realizada pela Folha de Pernambuco em 2018 segue sem solução: até o momento, não houve qualquer explicação acerca de um repasse realizado através de uma emenda parlamentar de 2016, que previa o investimento de cerca de R$ 250 mil no Centro Cultural mantido pela artista, na beira-mar da praia de Jaguaribe.
Segundo Beto, o dinheiro chegou aos cofres da prefeitura, mas jamais ao destino previsto em lei. A artista procurou a promotoria municipal, que mandou a prefeitura de Itamaracá se pronunciar sobre o assunto, dando como prazo o último mês de julho. Até o momento, Beto não obteve respostas nem da prefeitura, nem da promotoria. "A estrutura do espaço está ainda mais deteriorada, e estamos perdendo as esperanças de resolver essa questão", lamenta. Para fazer o lançamento do disco em Itamaracá, atendendo à vontade de Lia, a produção está buscando verba em outras instâncias e deverá alugar e montar uma estrutura temporária no local.