'Perdi leitores, certamente, mas também ganhei leitores', comenta Laerte

A ilustradora, cartunista, atriz e apresentadora concedeu entrevista exclusiva à Folha de Pernambuco, na qual falou sobre transgeneridade e sobre a arte que assina para a camisa do bloco Eu Acho é Pouco

Laerte - Divulgação

Laerte Coutinho tem 68 anos. Há 10, deu início a um processo de amadurecimento da mulher que já existia dentro de si e começou a externar o que borbulhava no corpo e na mente. Passou, portanto, a ser chamada no feminino. Tornou-se mais: manifesto em forma de gente. Remodelar uma imagem construída durante 58 anos mexe com estruturas de dentro e de fora. Um furacão de transformação que talvez nem tenha fim. A cartunista e chargista paulista está cravada na história do Brasil. A sua arte formou e inspirou gerações - seja através das suas mais de 20 obras, seja nos principais veículos de comunicação do País, por onde o público também se acostumou a consumir e admirar a sua criatividade. Laerte segue conectada à contemporaneidade, em sintonia total com o que rola na política, na arte, na vida.

Referência do que passou e do que está por vir, também é apresentadora, atriz: é várias em uma. Recentemente, aceitou o convite do Eu Acho é Pouco para assinar a camisa do bloco pernambucano em 2020. "O Carnaval é aquilo que não se controla na vida. Tudo que transborda e que escapa. Os desvios em meio às normas... Alegria, catarse, cantos e gritos, o povo na rua, nossos corpos em um embate popular", diz o manifesto da agremiação. Foi norteada pela referência da "caça às bruxas" que Laerte deu forma à ilustração. Em entrevista exclusiva à Folha de Pernambuco, ela falou sobre transgeneridade, resistência e o processo criativo para a arte destinada ao bloco do dragão.

Você virou um símbolo de resistência e coragem ao ressignificar, de certa forma, toda uma vida já consolidada e conhecida quando adotou a identidade feminina. Como funcionou esta ruptura (ou redescoberta) para você?
Olha, vem funcionando com pouca cara de ruptura, pra ser sincera. Eu me sinto a mesma, meu trabalho continua o mesmo, minha cabeça pensa parecido. Muita coisa mudou, claro - tenho novas amigas e amigos, principalmente. E a atividade política também deu uma ressignificada legal!

Imagino que, ao adotar esta identidade readequada, você tenha deixado para trás hábitos, personagens. Foi isso mesmo? Se sim, qual "perda" foi a mais custosa e difícil para você?
Deixei pra trás “hábitos” no sentido de roupas, principalmente - as masculinas. Meu modo de fazer histórias, de trabalhar com o humor, também mudou, mas de forma independente em relação às questões de gênero. Foi uma época de mudanças, grandes mudanças, esse começo de milênio. Não senti nenhuma como sendo custosa ou difícil.

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O que você acha que mudou no seu olhar e, consequentemente, na sua arte depois da transição? Qual foi o saldo?
Como eu disse - a mudança mais radical por que passei foi no meu modo de expressão profissional - parei de usar personagens, parei de “construir piadas”, enveredei por um humor mais interessante (pra mim, pelo menos). Aí, bem mais do que na transgeneridade, percebi modos novos de olhar e conduzir a criação; e são modos que não se esgotam, sempre abrem novas possibilidades. Perdi leitores, certamente, mas também ganhei leitores. Não contei quantos, mas o saldo positivo não é numérico, é - sei lá, histórico.

Você tem sido militante fiel contra o governo Bolsonaro, e usa a sua arte como denúncia. O que mais te apavora neste período pelo qual passa o Brasil? E o que você pensa que pode ser feito como forma de resistência?
Não sou militante fiel, não… Não gosto muito de ser “fiel” em nada. Acho que estamos vivendo uma tragédia, que pode piorar - e não vejo alternativa a um esforço geral no sentido de derrotar essa força destruidora que conseguiu se instalar no governo. Resistir é lutar pra impedir a violência que está se estabelecendo, bloquear os gestos de desmonte que estão sendo praticados, resgatar as pessoas e os trabalhos que estão sob ataque. Pra isso é preciso unir muita gente, agir com inteligência e saber usar nossa experiência como povo que já conseguiu vencer grandes batalhas.

Como você se sente sendo trans no país que mais mata pessoas trans? como sua arte te ajuda a lidar com isso?
Minhas histórias…espero que ajudem nessa luta. Espero que consigam ajudar as pessoas a não se sentirem sozinhas e a encontrarem no humor um modo de entender a vida e se armar pra enfrentar os problemas. Às vezes me vejo produzindo material mais “engajado”, no sentido propagandístico da palavra. Há momentos em que é necessário. Na verdade, não tenho muita certeza sobre como o trabalho que faço ajuda, objetivamente, as coisas que eu quero ajudar.

 

Estampa da camisa de 2020 do Eu Acho é Pouco - Crédito: Divulgação

 

Você topou fazer a arte da camisa do bloco Eu Acho é Pouco, conhecido, sobretudo, pelo seu tom político, com uma folia bem irreverente. Você já conhecia a agremiação pernambucana?
Não, não conhecia o Eu Acho É Pouco. Amigas e amigos me contataram e entendi que se trata de um movimento muito positivo de luta e alegria.

Qual é, aliás, a sua relação com o Carnaval?
Pois é, atualmente é uma relação minguada. Já tive alguma atividade com a Escola de Samba Pérola Negra, de S. Paulo; mas foi por pouco tempo.
Carnaval, em geral, foi época de férias pra mim; boa pra viajar. Depois ficou péssima pra viajar, de tanta gente que fazia o mesmo. Acho uma festa bonita e cheia de história e significado, mas não me atrai muito, pessoalmente.