Futebol materializa ressocialização na RMR
Com direito a torcida e final protagonizada por Juventus e Real, torneio ajuda a transformar a realidade de reeducandos
Deco recebeu a bola. Passou pelo primeiro, entregou para Ronaldinho... abriu, chutou: gooooool. Longe dos holofotes do Santiago Bernabéu, mais distante ainda do italiano Allianz Stadium, Pernambuco conheceu na quarta-feira o campeão da 3° Liga de Futebol do Presídio de Igarassu (PIG). Trata-se da Juventus, time formado por reeducandos do pavilhão H da unidade prisional, localizada na Região Metropolitana do Recife (RMR). Com direito a brasão no peito e chuteira nos pés, a Velha Senhora, que pouco tem de italiana, bateu o rival Real Madrid, da ala G, pelo placar de 4x0 e levantou o primeiro título de sua história.
Organizada pela Comissão Esportiva do Presídio de Igarassu (CEPI), através da Secretaria Executiva de Ressocialização de Pernambuco (Seres), a Liga teve início em julho e contou com 12 equipes. Todas se enfrentaram em uma única fase, de modo que os oito melhores avançaram às quartas de final. Ao todo, foram 74 jogos disputados durante três meses. O secretário de ressocialização do Estado, Cícero Rodrigues, acompanhou a última partida da Liga e explicou a importância da competição como agente de reinserção dos reeducandos na sociedade.
"É um campeonato muito bem organizado e que é exemplo de ressocialização para todos. A resposta é imediata a partir do momento em que eles se oferecem para participar e isso já mostra que estão querendo acertar e 'tirar a cadeia deles' de forma tranquila", destacou o secretário.
O que de longe parece representar uma mudança exclusiva para a população privada de liberdade, quando a Liga do presídio começa, a camisa social e o sapato de couro dão lugar ao uniforme folgado e ao tênis rasteirinho, indicação de que no campo, assim como dita a regra do futebol, todo mundo deve ser igual, ainda que os papéis sociais sejam, claramente, dissemelhantes entre si. Charles Belarmino se enquadrou bem à essa condição.
Além de diretor da unidade prisional, ele também é jogador da Juventus. De forte personalidade, ainda que respaldado pela hierarquia e pelo respeito conquistado entre os reeducandos, o "livre acesso" conquistado por "Seu Charles" - como é chamado -, ao que parece, consegue minimizar entre a população carcerária de Igarassu a sensação de vigilância ostensiva que dentro do cárcere é sentida 24 horas. Com isso, o processo de ressocialização dentro do presídio vai sendo minuciosamente materializado junto às atividades esportivas implantadas na unidade.
"O retorno é a tranquilidade, a rivalidade é no futebol. Quem faz essa evolução acontecer são eles. Eles quem são os vencedores. Quem ganha é a sociedade, quem ganha é todo mundo", disse Charles, antes de trocar a formalidade de sua sala pelo campo batido. “Eles só falam disso”, completou o diretor da unidade.
Bateria e gritos de apoio separaram a euforia dos arredores do campo da concentração dos atletas, antes de pisarem pela primeira vez no tapete de barro. Diferente das arenas nas quais jogam os times de nome homônimo na Europa, o palco tem as quatro linhas do campo desenhadas por rastros de gesso. "Ah, ah, ah...a festa vai começar", gritava a torcida da Juventus de um lado. "Bate na palma da mão, o Real é campeão", exclamava, de outro, a torcida do time da ala G.
Jeferson Santos Pereira, o Deco, participou de um dos gols marcados pela Juventus na final da Liga, fruto do chute certeiro de Ronaldinho, que, em vacilo da defesa do Real, cortou para o meio e bateu firme no ângulo do goleiro adversário. Com toda pinta de jogador profissional, até mesmo nas palavras, o jovem volante, de 22 anos, já passou pelas categorias de base de Sport e Santa Cruz. Além disso, ainda no juvenil, integrou o elenco sub-17 do Serra Talhada. Depois foi promovido ao sub-20 e, pela intimidade que tem com a bola, teve o contrato assinado para disputar o Campeonato Pernambucano pelo clube sertanejo, em 2017. Por ironia do destino, salários atrasados e algumas complicações no futebol desmotivaram o jovem, que com o fim do jogo decretado e o título nas mãos, prospectou uma nova vida longe das grades.
"A gente venceu e vamos comemorar. Futebol é isso, é a arte. Nada de violência. Quando eu chegar lá fora, vou pensar direitinho o que eu quero pra minha vida. Se der pra jogar bola eu jogo. Se for pra trabalhar, eu trabalho. Só não quero essa vida mais", finalizou. Em meio às batalhas diárias enfrentadas no sistema carcerário, no dia 11 de dezembro de 2019, o PIG viveu o clima de um caldeirão, com dedos, sorrisos e olhares apontados para o céu. Dessa vez, além de agradecimentos pelos gols, pedidos por um estado de liberdade que ultrapasse os limites de uma partida de futebol.
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