O legado incalculável de Francisco Brennand segue imortal na história

O artista plástico, que faleceu na última quinta-feira (19), aos 92 anos, viveu intensamente e rodeado de pessoas queridas, com uma trajetória que exala orgulho e inspiração

Francisco Brennand - Leo Motta/Arquivo Folha

Francisco Brennand: ceramista, escultor, desenhista, pintor, tapeceiro, ilustrador ou o maior artista pernambucano de todos os tempos. Em suntuosidade e no pensar de sua obra, não há precedente. Agora, como referência, sua arte será imortalizada após seu falecimento, na quinta-feira (19), aos 92 anos, em decorrência de complicações respiratórias, depois de dez dias hospitalizado. Mas "continuar vivo é o desejo dele, sempre foi", diria sua filha Maria Helena, em conversa com a Folha de Pernambuco, em setembro, ocasião em que foi anunciada a criação do Instituto Oficina Francisco Brennand, um desdobramento para que o espaço, localizado no bairro da Várzea, permaneça preservado em meio a histórias, experimentos, figuras, cerâmicas e esculturas de uma memória afetiva sem paralelos e, portanto, insubstituível. A partir das 10h desta sexta-feira (20), o corpo do artista será transferido para o cemitério Morada da Paz, em Paulista, onde será cremado.

História

Nascido na Várzea, em 11 de junho de 1927, e falecido aos 92 anos, no dia 19 de dezembro de 2019, Francisco Brennand é um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros. Apesar de ter exercido uma espécie de reclusão voluntária nas últimas décadas, exigindo preservar uma solidão que alimentava seu poder criativo, ele sempre gostou de circular pelo espaço de sua oficina e conversar com os visitantes comuns e os muitos artistas que lá compareciam para apreciar seu trabalho. Ao longo de toda a sua vida, Francisco também se manteve atento a diversos movimentos artísticos que aconteceram dentro e fora de Pernambuco.

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Francisco e seus irmãos cresceram brincando nas matas que circundavam o Engenho São João, onde moravam, e isso alimentou seu imaginário para sempre. Ele ingressou na vida artística aos 13 anos, e, aos 20, já obteve o primeiro prêmio do 6º Salão de Arte do Museu do Estado de Pernambuco. Foi aluno do pintor Álvaro Amorim, um dos fundadores da Escola de Belas Artes de Pernambuco, e dos escultores Murilo La Greca e Abelardo da Hora. Em 1947, o pintor Cícero Dias, que morava na França mas veio ao Recife realizar uma exposição, se encantou com o talento de Francisco e convenceu o amigo Ricardo a mandar o filho para a Europa, onde estudou por alguns anos com mestres como André Lhote, Fernand Léger e Balthus.

De volta a Pernambuco, Francisco reocupou a antiga Cerâmica São João, fundada por seu pai dez anos antes de seu nascimento. Abandonada, a fábrica virou laboratório para o artista fazer experimentos com esmaltes cerâmicos e processos de queima. Ao mesmo tempo, passou a participar de movimentos culturais que fervilhavam por aqui. Em 1953, juntamente com Lula Cardoso Ayres e Aloísio Magalhães, ele apoiou a fundação da Escolinha de Arte do Recife, uma iniciativa da educadora Noêmia Varela e do pintor Augusto Rodrigues que persiste até hoje.

Seu ateliê era como um santuário para o artista - Crédito: Leo Motta/Arquivo Folha

Em 1963, Francisco desenhou as ilustrações da cartilha de alfabetização produzida pelo educador Paulo Freire. Francisco havia sido um dos fundadores do Movimento de Cultura Popular (MCP), célebre sociedade civil que pretendia "Educar para a Liberdade" e que teve entre seus criadores, além dele e de Paulo, intelectuais como Hermilo Borba Filho, Abelardo da Hora e Ariano Suassuna. Todas as cartilhas produzidas foram destruídas em março de 1964, após o golpe militar, restando pouquíssimos exemplares.

Nos anos 1970, também junto com Ariano Suassuna, seu amigo de adolescência, Francisco integrou o Movimento Armorial, uma iniciativa artística com o objetivo de criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste. Uma de suas obras mais conhecidas, "Batalha dos Guararapes", de 1962, tem forte caráter regionalista e, segundo alguns críticos, antecipa a temática armorial - que Brennand, contudo, negava, afirmando que participou do movimento muito mais por amizade a Ariano do que por outros motivos. 

Linha do tempo sobre Francisco Brennand - Crédito: Arte Folha PE/Hugo Carvalho

Sua obra, somando cerâmica e pintura, sempre se identificou com o Nordeste, embora apresentando caráter universal. Francisco Brennand continuou lendo, escrevendo, pintando e fazendo esculturas até o fim. "Uma pessoa de curiosidade imensa, e que por isso não envelheceu, manteve a cabeça perfeita apesar do corpo alquebrado de 92 anos", descreveu a filha Neném em entrevista à Folha de Pernambuco, em setembro passado.

O legado

Não é difícil encontrar peças assinadas por Francisco Brennand espalhadas por diferentes pontos da cidade do Recife. Mas se o objetivo é admirar a obra do artista plástico em toda sua magnitude concentrada em um único local, o endereço certo é a Oficina Cerâmica Francisco Brennand. Localizado no bairro da Várzea, cercado por resquícios ainda preservados de Mata Atlântica, o ateliê acabou se convertendo em um imenso museu a céu aberto, recebendo visitantes do mundo inteiro.

Entre esculturas, murais, pinturas, painéis, desenhos e objetos cerâmicos, o conjunto arquitetônico de 15 mil metros quadrados abriga cerca de 3 mil peças. Os primeiros passos desse gigantesco complexo artístico foram dados em 1971, quando Brennand decidiu reformar a desativada Cerâmica São João, de propriedade paterna, e transformá-la em um espaço de criação e exposição permanente de suas produções. As dependências em ruínas da antiga olaria, fundada em 1917, já eram utilizadas pelo artista plástico para alguns experimentos desde 1961.

A Oficina Cerâmica, na Várzea, traduz o fazer artístico de Brennand - Crédito: Rafael Furtado

Em "Testamento I: o oráculo contrariado", texto autobiográfico publicado em seu site, Francisco Brennand explica a concepção do local como uma oficina. "Recordo-me de ter encontrado a velha cerâmica São João em ruínas. Inclusive, cabe salientar que não havia necessidade de um anteprojeto, pois as antigas paredes já indicavam aquilo que devia ser refeito: as ruínas balizavam tudo. Portanto, toda e qualquer ideia chegava à medida do trabalho em progressão. Talvez, por isso, eu providenciei chamar o lugar de 'oficina', baseado na origem da palavra 'ofício' (officium, em latim) que quer dizer 'trabalho'; local de trabalho, evitando o francesismo atelier. Ao mesmo tempo, há a ideia de uma comunidade, à maneira das coletividades de ofício medievais e renascentistas, onde o mestre e os discípulos trabalhavam em conjunto, a serviço de um só desígnio", escreveu.

Quando criança, Brennand costumava brincar com seus irmãos na antiga fábrica de tijolos e telhas do pai. Reestruturado como uma espécie de santuário, o cenário de tantas memórias agora é ocupado por ovos, pássaros roca, sentinelas e tantas imagens que povoam o universo mítico, erótico e ritualístico do criador pernambucano. Em setembro deste ano, com a formalização da oficina como instituto, mais um passo foi dado no sentido da preservação desse legado. Na prática, o museu deixou de ser privado e passou a ser uma instituição sem fins lucrativos, permitindo que parcerias sejam estabelecidas para projetos artísticos, culturais e sociais. As filhas do escultor, Neném e Maria Helena, estão à frente desse processo.

Ponto turístico

É de autoria de Francisco Brennand um dos principais cartões-postais da capital pernambucana. Um obelisco de 32 metros de altura e confeccionado em argila e bronze, a "Torre de Cristal" se destaca entre as 90 peças que integram o Parque das Esculturas, no bairro do Recife, fincado entre o rio e o mar. Inaugurado em 2000, o conjunto de obras foi criado em homenagem aos 500 anos do descobrimento do Brasil e se transformou em ponto turístico. Inspirado em uma flor descoberta por Burle Marx, chamada Flor de Cristal, o monumento principal divide espaço com esculturas de ovos, pássaros, tartarugas e outros seres imaginados pela mente inventiva do artista.