Brennand, um compositor de paisagens

Reverenciado por acadêmicos, obra de Brennand transcende à cena da cultura local

Monumento no Parque das Esculturas, Bairro do Recife, é um dos principais erguidos por Francisco Brennand - Divulgação

Chama-se "Torre de Cristal" o monumento principal que compõe o Parque das Esculturas Francisco Brennand, localizado em frente ao Marco Zero do Recife. Confeccionada em argila e bronze, na pompa dos seus 32 metros de comprimento, a obra é uma das mais emblemáticas entre todas já esculpidas pelo artista pernambucano, falecido na última quinta-feira (19).

E, dentre as mais diversas observações feitas à peça, é a sua estrutura fálica que chama atenção, pelo menos aos que não se detêm a interpretar as minúcias do pintor, escultor, muralista e ceramista que, ao longo de pelo menos cinco décadas de seus 92 anos de vida, trouxe como essência a arte alinhada a espaços, cores, formas e citações, em um universo particular, que teve como ponto de culminância o museu a céu aberto a que ele chamava de Oficina.

"Em qualquer lugar que se veja a obra dele, dificilmente será vista apenas uma escultura, um objeto isolado. Sua obra cria ao seu redor uma espacialidade que redefine a paisagem e concede, a quem a observa, uma outra interpretação do lugar", sentencia o arquiteto e urbanista Roberto Salomão. Já para o também arquiteto e historiador José Luiz da Mota Menezes, "Recife tem a sua Torre Eiffel, uma coluna belíssima colocada com o restante das esculturas, dão uma nota magnífica à entrada do Porto".

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De fato, mesmo aos desapegados do fazer artístico, não há dificuldade em perceber que a obra de Brennand vai além do esculpir figuras ou articular monumentos, ou até mesmo pensar a arte como um meio e nunca como um fim. "A obra dele é complexa, embora ganhe visibilidade imediata à primeira vista, seja pela técnica utilizada na cerâmica, pelas cores e vivacidade ou pelo universo feminino evocado e com maestria. O que ele deixou não deve ser visto individualmente mas como um conjunto, um todo que existe em cada peça aliada à sua localização, ordenação e espaço, algumas delas incorporadas ao meio e que, portanto, não podem ser deslocadas", analisa a artista e professora de História da Arte Maria do Carmo Nino, que também reflete sobre a tradição "escultórica fálica" de sua obra.

"Essa ideia de erigir-se está presente em toda a história da escultura, porque a sua monumentalidade é antigravitacional, que segue, portanto, contra a ideia da queda, por isso se eleva. Com o minimalismo é que surge depois a obra deitada no chão. Talvez não seja evidente para um leigo, mas o princípio norteador da obra dele tem uma dimensão erótica que não é o cunho sexual, mas do mito", argumenta.

Já para o professor doutor adjunto Daniel de Sousa Leão, que integra o Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a relação com a sexualidade, comumente presente na obra de Brennand, tem a ver com a questão das identidades, uma vez que o senso de erotismo é um elemento de composição subjetivo do processo de um artista, ao mesmo tempo em que, tendo o surrealismo como um dos movimentos centrais de sua obra, estaria justificado o elemento fálico nos monumentos.

"O surrealismo tinha exatamente essa dimensão, associando imagens de sonho que psicanaliticamente falando podem ser relacionadas tanto aos medos quanto aos desejos, porque, trazendo a sexualidade para o artístico, ele traz o tema para a produção das identidades nas expressões. Ele fazia isso desde muito tempo, antes, inclusive, dos movimentos feministas trazerem à tona questões de intersexualidade. Brennand já fazia isso por meio da arte moderna", ressalta Daniel, que avalia como intríseca à sua obra o expressionismo, o simbolismo e o cubismo como nortes: "A obra dele, do ponto de vista formal, é eclética e heterogênea".

Brennand: "Aldeia global com sotaque nordestino"
Francisco Brenannd foi muito além de identidades locais, embora o tom regional esteja presente em sua obra, que teve como ponto crucial o artista/ceramista, cuja matéria-prima está inserida na tradição do Nordeste. Mas é impossível limitar a história desse artista pernambucano, que transcende em suas formas de expressão. Para a artista plástica Alice Vinagre, "a sua alma enriquece o imaginário de nossa aldeia global com sotaque nordestino".

E é exatamente por aí que ele é percebido quando imprime em cada peça que foi esculpida ou pintada, o universal de seu fazer artístico. "Brennand conseguiu juntar o que a gente tem de local com o universal. Ele é um artista do mundo", confirma José Patrício, também artista plástico, que corrobora com a mesma opinião sobre o universal Brennand, assim como o acadêmico Daniel Sousa Leão que pontua sobre o "ir além da indetificação nacional de sua obra, que se alinha a outros povos e outras experiências históricas e artísticas".

Sobre o "ser tocado" pela obra de Brennand, flui com leveza percorrer os poucos mais de 15 mil metros quadrados da Oficina, localizada no bairro da Várzea, na Zona Oeste do Recife. Desde setembro, o complexo arquitetônico ingressou em um processo que pretende fincá-lo como instituto e, dessa forma, estabelecer seu legado à preservação, entre outros propósitos. Por lá, um verdadeiro santuário dedicado à arte pode ser contemplado por quem seja ou não adepto de obras, pinturas, esculturas, cerâmicas e totens assinados pelo artista. "É uma arte de paixão, emoções, sonhos. Uma arte que procura mobilizar as emoções em todos, mesmo aos que não têm conhecimento de especialista", atesta o acadêmico.

Com a suntuosidade de quem viveu para compor minuciosamente o espaço, não demanda esforços ter a arte de Brennand impregnada por afetividades de quem dispõe em observá-la com ou sem destreza artística. Dos pássaros-guardiões às releituras de Adão e Eva, passando pelo Templo ao Ovo Primordial ou contemplando os seres mitológicos, a percepção é única em relação à importância que se extrai daqueles caminhos. "A melhor maneira de ver Brennand é na Oficina, pela quantidade, pelo acúmulo, pela espécie de obsessão criativa que ele tinha e que impressiona", comenta Maria do Carmo.

"Não vamos à Oficina sem nos sentir afetados. É uma característica da obra dele, como uma maneira de nos tirar de zonas de conforto e apresentar temas difíceis, nos levando a questionamentos de nossas próprias certezas. É uma obra inquietante e, ao mesmo tempo, afetiva", completa o acadêmico.