Moda rejeita status quo em 2019 e encara mudanças
Em 2019, por exemplo, o show anual da grife de lingerie Victoria's Secret foi cancelado sem data para voltar
A primeira década de um século, na moda, é a ressaca do anterior. Foi assim do 15 ao 16, o início da beleza vinculada às curvas amplas, do 18 ao 19, quando o espartilho passou a sufocar, e do 19 ao 20, quando ele foi posto na fogueira do tempo. Neste ano, queimou-se mais do que roupas. Deram descarga no status quo fashion.
O Carnaval nem havia subido o tom das cores e, em fevereiro, a indústria vestiu o luto que não despiria nos meses seguintes. Última tesoura ainda afiada do tempo de Givenchy e Saint Laurent, o alemão Karl Lagerfeld, estilista da Chanel e da Fendi, morreu em Paris varrendo de vez o glamour aristocrático da passarela. Ele mantinha em conserva a estética burguesa baseada em peles, tweeds, correntes e ombreiras. Sem ele, o líquido deve perder validade e ser substituído, não apenas na Chanel, pelo frescor da simplicidade.
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Lagerfeld era um desajuste glamoroso em um mundinho fashion millenial, inconstante em seus tênis combinados com jeans e moletom. Ainda que tudo parecesse em ordem, havia um sentido de inadequação em seu estilo, como o reflexo envelhecido no espelho que a moda teve de encarar depois. A imagem mais cortante partiu do Brasil, um mês depois, quando o modelo Tales Cotta tombou no chão da passarela na São Paulo Fashion Week após um mal súbito.
Poucos minutos se passaram entre a cena e o recomeço do desfile. Ainda que não houvesse culpados pela morte do jovem, a audiência não perdoou a morte do bom senso e o longo silêncio da produção. Outros flertes funestos e um certo fetiche pelo sofrimento humano que a indústria parece alimentar desde a febre das modelos sílfides dos 1990 pautaram crises de imagem.
Na semana de moda de Londres, o estilista Riccardo Tisci parecia querer falar dos perigos do nacionalismo britânico, mas o simbolismo de uma corda no pescoço da modelo não soou como crítica, mas uma apologia da Burberry ao suicídio. "Sorry", disse a grife. As camisas de força do desfile de Alessandro Michele, da Gucci, não passaram a mensagem de agonia e de imobilidade ante ao caos, mas de escárnio das enfermidades psíquicas e da depressão. "Scusi", respondeu a marca.
Com uma horda de modelos exibindo "doente" impresso nas roupas e algumas caminhando com suporte metálico e bolsas de soro presos ao corpo, a grife Kimhekim foi massacrada após seu desfile na semana de moda de Paris, em outubro. Mas não houve "pardon", porque a ideia era mesmo aparecer, ou lacrar, no novo dicionário pop. Pedidos de desculpas repetidos em diversas línguas reforçam a conjuntura de mudanças, própria dos fim de ciclos. O lacre está mesmo em xeque. O fim dos "likes" aparentes no Instagram, os joinhas que massageiam o ego, é o exemplo factível de um ano que pegou em cheio quem se exibia só pela curtida. Blogueiras sentiram, marcas virtuais, também.
Acabou também o maior lacre televisionado da moda. O show anual da grife de lingerie Victoria's Secret foi cancelado sem data para voltar por causa de uma audiência – que já era pífia – incomodada com engolir um padrão de beleza inalcançável. O ano chegou ao terço final destronando e revendo os contratos milionários dessas tops, as tais "angels". A direção da marca preferiu jogar a toalha a colocar gordas, transexuais e perfis realistas na passarela. Para a foto do catálogo, serviam, mas para rodar em tela pública, não.
Vendeu-se neste século a ideia de que marcas criam padrões estéticos, mas, provou-se, seus legados não se resumem a prever, mas a entender o que mudou no tecido social para, assim, imaginar um novo tecido tátil. Fica para trás quem insiste na imposição. Chanel destruiu o espartilho porque as mulheres já prescindiam dele; Dior criou o "new look" porque havia pouco tecido e as pessoas saíam da míngua da Segunda Guerra; e Stella McCartney teria inventado o luxo sustentável porque, sacou antes, o planeta não aguenta o método linear de produção da moda.
O discurso chegou a um ponto de virada, neste ano, quando a designer passou a servir de consultora do grupo LVMH para a sustentabilidade, na esteira de um acordo firmado por 150 marcas, durante a última cúpula do G7, para reduzir impactos na confecção. Soa sintomático da inércia do varejo brasileiro o fato de não haver marcas locais ao lado das assinaturas de Zara, H&M, Gucci, Prada e outros mocinhos.
Isso talvez se explique porque nenhuma tendência ou movimento cola sem a pressão da rua. Mesmo as cores. A de 2019, segundo a Pantone, seria o "living coral", um laranja fraquinho, nostálgico e calmo. A onda "orange is the new black" da empresa, e também a da ministra Damares Alves, que disse em janeiro ter chegado a era em que meninos vestem azul, e meninas, rosa, era só marola.
É que o ano foi tudo, menos tranquilo e normativo. Esteve mais pra preto é o novo preto.
A cor tingiu as imagens mais fortes do mundo, no corpo de jovens que protestaram em Hong Kong contra um governo que, segundo o New York Times, chegou a tentar impedir a entrada de peças da cor, ainda na alfândega, para conter a mensagem visual. Não deu. Adivinhe a cor usada pelas mulheres que protestaram na França contra o feminicídio. Observe a cor do terno de Greta Thunberg, a ativista mais influente da geração Z, na capa da revista GQ britânica e no qual se lê "você está me escutando?".
Mais uma vez, a moda encara o espírito de mudança, e há quem o veja tanto como um apocalipse quanto como o nascimento de um novo sentido de libertação do passado. Modelo improvável dessa encruzilhada, o presidente Jair Bolsonaro aderiu à mensagem, passando a usar uma pulseira azul, como a nova cor sugerida pela Pantone para 2020, na qual há uma alusão ao livro do Apocalipse. A passagem bíblica conta a salvação dos protegidos pelo "sangue do cordeiro", que enfrentaram a morte, e a perdição dos condenados à terra, que vão se juntar ao diabo "encolerizado". Maniqueísta, o novo tempo já começou. A moda só não sabe ainda para onde correr.