O poeta da precisão e abundância

Se vivo estivesse, poeta pernambucano completaria, nesta quinta (9), cem anos

100 anos João Cabral de Melo Neto - Renan Cepeda/Folhapress

 

100 anos João Cabral de Melo Neto - Arte: Folha de Pernambuco/Greg

Uma vida muito mais espessa
João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife, no dia 9 de janeiro de 1920, embora sua certidão de nascimento erradamente registre a data de 6 de janeiro. Nesta quinta-feira (9), portanto, se vivo estivesse, completaria 100 anos. Era filho de Luís Antonio Cabral de Mello e de Carmen Carneiro Leão, e, depois de adulto, resolveu grafar o "Melo" de forma mais simples.

Considerado um dos mais importantes poetas de língua portuguesa, João pertencia a uma família com muitos nomes ilustres: era primo, por parte de mãe, do sociólogo Gilberto Freyre (cuja mãe, Francisca, era irmã de Maria Olindina, avó de João) e do historiador José Antônio Gonsalves de Mello (filho de Albertina, irmã de Carmen). Por parte de pai, João também era aparentado do poeta Manuel Bandeira, já que as bisavós de ambos, Ângela Felícia e Cândida Esméria de Lins Albuquerque, eram irmãs.

João adorava genealogia, conforme conta sua filha Inez, e não foi o único famoso na prole de Luís e Carmen. Seu irmão mais novo, Evaldo, o caçula e único remanescente vivo dos cinco filhos do casal, é um historiador destacado, que, assim como João, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras - salvo engano, o único caso em que dois irmãos obtiveram esse destaque.


João nasceu na casa do avô, o advogado e professor de Direito Virgínio Marques Carneiro Leão, que, por questões de higiene e segurança, exigia que o parto dos netos acontecesse no Recife e não no engenho onde a família morava. Mas, em seguida, foi levado para o Engenho Poço, em São Lourenço da Mata; e, depois, para os engenhos Pacoval e Dois Irmãos, em Moreno. Neles, passou a infância e, após aprender a ler, gostava de declamar folhetos de literatura de cordel para os "cassacos", trabalhadores do corte da cana.

Por questões de segurança, quando ele tinha dez anos, durante a Revolução de 1930, a família mudou-se para o Recife, onde o clã Cabral de Mello habitava o Largo do Parnamirim, na Zona Norte. Passou, então, a conviver com uma porção de primos mais ou menos da mesma idade, que, entre outras brincadeiras, dedicavam-se a caçar passarinhos e pescar camarão-pitu no rio Capibaribe, que passava no quintal das casas.

Entre eles, estavam Lula, que hoje nomeia a praça em torno da qual todos moravam, e Fernando, pai do empresário Fábio Cabral de Mello. "Meu pai era de 1917, mais velho pouca coisa que João", pontua Fábio. "Eles conviveram muito, e papai foi citado de forma indireta nas poesias dele que falam da infância". Fernando, aliás, foi um dos poucos da família que guardou um exemplar dos desenhos que João fazia para presentear parentes e amigos.

Fábio Cabral de Mello guarda o quadro que João deu ao pai dele, Fernando - Foto: Divulgação

Leitor voraz, João alimentava o sonho de ser jornalista, mas foi rejeitado por um periódico local quando tinha 16 anos. Coincidência ou não, após o fato, ele passou a ser acometido por dores fortíssimas no lado esquerdo da cabeça, que o acompanharam vida afora, definindo grande parte de sua vida e chegando, inclusive, a impedi-lo de dormir uma noite inteira de sono.

Ainda jovem, João passou seis meses internado num sanatório, tentando em vão investigar se as dores seriam psicossomáticas. Chegou a tomar dez comprimidos de aspirina por dia, e homenageou o remédio no poema "Num monumento à aspirina", em que descreve a pílula como sendo "o mais prático dos sóis". Cinco décadas após tanto abuso de ácido acetilsalicílico, ele desenvolveu sérias úlceras gastroesofágicas. Operado em 1984, as dores de cabeça inexplicavelmente sumiram. Mas pouco tempo depois, João descobriu sofrer de uma doença degenerativa que o levou à cegueira.

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Linha do tempo sobre João Cabral de Melo Neto - Crédito: Arte Folha PE/Greg

Em 1940, a família Cabral de Mello mudou-se para o Rio de Janeiro, onde João, aos 20 anos, prestou concurso para o serviço público e entrou em contato com poetas como Carlos Drummond de Andrade e Joaquim Cardozo, destacando-se como um dos membros da chamada "Geração 1945" mas trilhando caminhos próprios. Ainda no Recife, havia conhecido a roda literária do Café Lafayette, frequentada por Willy Levin (apontado por Inez Cabral de Mello como sendo o grande mentor do seu pai) e pelo pintor Vicente do Rego Monteiro. O propósito de João era obter uma carreira que lhe desse condições para poder ler e escrever.

Em 1945, passa no concurso do Itamaraty, tornando-se diplomata. A carreira seguirá até 1990, com passagens pela Europa, pela América e pela África, sendo interrompida apenas em 1952. Junto com Amaury Banhos Porto de Oliveira, Antonio Houaiss, Jatyr de Almeida Rodrigues e Paulo Cotrim Rodrigues Pereira, ele foi acusado de criar uma "célula comunista" dentro do Ministério de Relações Exteriores e foi afastado pelo presidente Getúlio Vargas, ficando dois anos sem receber salário. Após recorrer ao Supremo Tribunal Federal, a acusação foi julgada improcedente e ele foi reintegrado em 1954. Entre o afastamento e a reintegração, João teve a chance de atuar na imprensa, em 1953, no jornal carioca "A Vanguarda", de Joel da Silveira.

No mesmo ano em que ingressou no Itamaraty, João se casou com Stella, que seria sua companheira por quatro décadas, até falecer de câncer, em 1986. Com Stella, ele teve cinco filhos: Rodrigo, Inez, Luiz, Isabel e João. Após a morte de Stella, João se casou com Marly, com quem esteve até o fim da vida. Conforme planejou, João teve condições de elaborar seus textos em paralelo com sua carreira como diplomata, e a oportunidade de estar em lugares diferentes inclusive beneficiou essa produção.
A Espanha, por exemplo, se destaca nesse contexto.

Com longos períodos passados em Sevilha, Barcelona e Madri, a cultura ibérica se tornou ainda mais presente em sua poesia, levando-o a ser homenageado naquele país por conta do amor explicitado em seus versos. Além da Espanha, Pernambuco é o lugar mais recorrente na produção de João Cabral. "Pernambuco sempre permaneceu na sua memória, e era sobre esse Pernambuco, esse Recife, que ele escrevia", afirma a filha Inez, que brinca dizendo que o pai era "extremamente bairrista". "É uma característica de todos os pernambucanos que conheço", ri.

Inez Cabral, segunda filha de João Cabral de Melo Neto (que na imagem aparece com dois de seus cinco filhos) - Foto: Acervo da família

Mesmo nos períodos em que esteve longe, João nunca perdeu a ligação com o Recife, onde visitava familiares e trocava experiências com outros escritores. Em 1954, por exemplo, participou da editora "O Gráfico Amador", projeto ousado que é considerado um marco para o design editorial brasileiro.

Idealizada por Aloísio Magalhães, Gastão de Holanda, José Laurenio de Melo e Orlando da Costa Ferreira, a editora trabalhava com uma pequena prensa manual e lançou livros, com visual arrojado, de autores como João Cabral, Ariano Suassuna, Carlos Pena Filho e Carlos Drummond de Andrade. Apaixonado pelo processo e já morando na Europa, João manteria em casa uma pequena prensa, com a qual produzia edições restritas de menos de cem exemplares.

O sonho de um homem
Quem tem a imagem do diplomata e do poeta intelectualizado e cerebral acha difícil acreditar num dos maiores prazeres do adolescente João: o futebol. Ele chegou a ser campeão juvenil, jogando pelo Santa Cruz, em 1935 (diz a lenda que foi convencido pela mãe, Carmen, que era tricolor). Jogava como "center half" (meio de campo) e chegou a ser visto como uma das promessas do futebol local.

Sua paixão, porém, era o América, cuja sede ficava na Estrada do Arraial, pertinho da casa dos Cabral de Mello, que viviam no Parnamirim. Uma legião de jovens locais partilhava desse amor, entre eles seu primo Fernando, também volante (cujo chute era tão fraco, que fez o dono ganhar o apelido jocoso de "Cafofa"), e seu amigo Zezé Cardoso.

João sofria de dores de cabeça terríveis, que o levaram a deixar a prática do esporte de lado, mas jamais deixou de torcer pelo América, levando esse amor consigo para o Rio de Janeiro, onde passou a torcer pelo América local. Foi enterrado junto com uma bandeira do time, levando para a eternidade um sonho que não conseguiu realizar, conforme o discurso que o jornalista e escritor Arnaldo Niskier proferiu durante a cerimônia em sua homenagem, na Academia Brasileira de Letras: "ver o América Futebol Clube voltar aos seus dias de glória". Em seus dias de diplomata, longe do Brasil, João deixou o futebol de lado e se aprofundou em outras culturas e práticas.

Durante os longos anos em que viveu na Espanha, entre Sevilha, Madri e Barcelona, ele aprendeu a amar as touradas. Execradas por muitos ambientalistas e por grande parte dos brasileiros, que tradicionalmente costumam torcer pelos touros, estes espetáculos fascinavam João Cabral de Melo Neto, que, numa entrevista ao documentarista Bebeto Abrantes (autor do filme "Recife/Sevilha"), declarou ter se tornado um entendido em tauromaquia. "Eu vi Manolete tourear, era o maior de todos", relembrou, referindo-se ao célebre Manoel Rodríguez Sánchez, falecido em 1947, durante uma tourada.

Segundo ele, as touradas o fascinavam por ser um evento em que se atua no extremo, no máximo do limite. Outro grande prazer de João era assistir aos espetáculos de dança flamenca, e fez muitos amigos entre os guitarristas e as bailarinas de Sevilha. "O flamenco me faz acordar", revelou. Curiosamente, junto com o futebol, as touradas e o flamenco são práticas que conjugam técnica à emoção e ao improviso. Algo aparentemente paradoxal dentro da vivência de alguém que pregou por toda vida a racionalidade e o distanciamento da emoção.

100 anos João Cabral de Melo Neto - Arte: Folha de Pernambuco/Greg

A fluidez do verso e o rigor da estrutura
João Cabral de Melo Neto publicou 28 livros de poesia e seis de prosa. Foi aos 22 anos, recém-chegado no Rio de Janeiro, que ele lançou o seu primeiro livro, "Pedra do Sono", em 1942. O tom da estreia, com uma inclinação ao surrealismo, no entanto, não seguiu adiante no conjunto de sua obra, tão marcada pela dualidade entre a fluidez dos versos e o rigor da forma. João não fugiu à preocupação social que permeou o imaginário da sua geração pós-Segunda Guerra Mundial.

As fragilidades e fraturas ainda estavam expostas e contrastavam com o desejo dos artistas de experimentar. O cenário exigia rupturas. João ficou conhecido como poeta engenheiro, uma face que pode ser vista na sua obra mais conhecida: "Morte e Vida Severina", um auto de Natal produzido em 1955 - paradoxalmente, um dos livros menos apreciados pelo próprio autor. A precisão da estrutura poética e o teor da sua poesia, real e precisa, dialogavam com tom de ineditismo na literatura. E o seu jogo de palavras revela o refinado processo de construção do poeta.

O rio Capibaribe assume muitas formas na poesia de João Cabral. E é impossível falar em João Cabral sem citar o rio que segue o seu curso por Pernambuco. Em "O cão sem plumas", por exemplo, é o rio que guia a poesia, que se constrói na conversa entre o curso de água natural e gente, bicho, fruta.

"Aquele rio/está na memória/como um cão vivo/dentro de uma sala/Como um cão vivo/dentro de um bolso/Como um cão vivo/debaixo dos lençóis/debaixo da camisa/ da pele", diz trecho de poema da obra, que segue em diálogo com a realidade. O poeta recebeu dezenas de prêmios; entre eles, o Prêmio Camões (1990), o Prêmio Neustadt International Prize for Literature (1992) e o Prêmio Reina Sofía de Poesia Iberoamericana (1994).



Na época de seu falecimento, era cotado para o Prêmio Nobel de Literatura. É membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 1969, e da Academia Pernambucana de Letras (APL) desde 1991 (já doente, ele não compareceu à cerimônia de posse na APL). João detestava homenagens, ainda mais na velhice.

"Meu pai sempre preferiu estar invisível na multidão, ficava constrangido quando desconhecidos o abordavam cantando loas", relembra Inez. Em 2005, o poeta foi eternizado no Recife de mais uma forma: ganhou uma estátua na rua da Aurora, com vista para o seu adorado Capibaribe. O monumento integra o projeto Circuito da Poesia, um roteiro obrigatório para qualquer turista na Capital pernambucana.

A estátua faz parte do Circuito da Poesia - Crédito: Arthur Mota