Cozinhar: um resgate afetivo
O ato de cozinhar pode se estabelecer a partir de necessidade, e também por prazer
Da minha pré-adolescência aos dezoito ou dezenove anos, passamos por uns apertos nas finanças lá de casa, agravadas pela construção de uma casa, que se arrastou por oito longos anos. Sem mais poder pagar lavadeira e empregada, minha irmã mais velha e eu fomos chamadas a contribuir com tarefas mais pesadas, como lavar roupa e cozinhar para a família, com oito pessoas.
Minha irmã cuidava dos irmãos menores e da cozinha, de manhã; eu, ajudava com a roupa e cuidados com os pequenos, à tarde. Meus pais, estoicos no sacrifício, trabalhavam fora o dia todo e traziam a educação dos filhos na rédea curta.
Por uns tempos, fugi da cozinha como rotina. Bom mesmo era fazer sobremesas (quando havia folga no orçamento) e inventar umas gororobas para sair do trivial. Eu pensava, naquele tempo, que dava para adiar a tarefa, por uma crença limitante que me dizia: cozinha é escravidão.
Até que, lá pelo segundo ano do curso de Nutrição, vieram as disciplinas mais práticas, como Técnica Dietética e Arte Culinária I e II. Eu levava aquilo muito a sério, tanto quanto estudar fisiologia, bioquímica e dietoterapia, e tudo começou a fazer sentido: conhecer as propriedades dos alimentos e a alquimia que resultava daquelas combinações, era fundamental para o êxito futuro: administrar Serviços de Alimentação, treinar pessoas, prescrever dietas e tudo o mais.
Aí veio um fato curioso: casei e fui morar na casa da sogra, a qual delimitava o espaço da cozinha como seu território inexpugnável. Eu, que ainda estava concluindo a graduação e parindo dois filhos consecutivamente, achava muito natural a divisão de tarefas, e só me vi face a face com as panelas, como obrigação, quando ela se ausentou em viagem a outro Estado e demorou alguns meses, que pareceram intermináveis.
Em casa ainda teve muito arroz-papa e algumas panelas queimadas, em decorrência do cansaço extenuante da lida, trabalhando o dia inteiro e correndo muito para dar conta de tudo. Mas tudo foi uma bendita escola para treinar algumas virtudes - a paciência, sobretudo.
E na trilha destes quarenta anos, fui dominando este espaço, tornando as rotinas bem operacionais, otimizando o tempo disponível em casa, racionalizando as compras, escolhendo, sempre, comida de verdade como a máxima prioridade.
Tive a bênção de ter Carminha como colaboradora doméstica competente e amorosa por bom tempo, mas, nem por isso, me esquivei de ensinar os meus filhos a cozinhar, a comprar alimentos com os mesmos critérios, e a participar solidariamente na divisão das tarefas.
No meu ponto de vista, cozinhar é um dever de casa que todas as famílias deveriam ensinar. Embora hoje as coisas sejam mais fáceis, terceiriza-se tudo: da escolha do que comprar e do que comer, até a hora e o lugar, geralmente fora de casa, para muitos, o que gera alguns equívocos que respingam na qualidade de vida e na saúde.
Na profissão, fui abençoada pela formação na UFPE, e por todos os cozinheiros que partilharam seus segredos. O Restaurante Universitário e o Hospital das Clínicas foram as melhores oficinas, onde quase enlouquecíamos pelas dificuldades orçamentárias, mas também onde a necessidade de superar obstáculos forjou nossa competência e nosso zelo.
Hoje, afastada da rotina de produção de refeições coletivas, mantenho-me dona do meu espaço de cozinhar: metade por necessidade, metade por legitimação de tudo que aprendi.
Acho que a cozinha é onde passo mais tempo, quando estou em casa. E lá, em pleno início do dia, preparo uma refeição frugal, agradecendo a Deus pela bênção do alimento na mesa, aos meus pais, pela firmeza, e a todos que plantaram, colheram, transportaram e tornaram possível tudo isso!
*É nutricionista e atua no Tribunal de Justiça de Pernambuco no Núcleo do Programa Saúde Legal. Escreve quinzenalmente neste espaço