Mortes em Paraisópolis decorreram de ação policial, conclui Polícia Militar

Segundo a versão oficial, os agentes iniciaram a perseguição após ocupantes de uma moto dispararem contra policiais da Rocam

Ação da Polícia Militar em baile funk em Paraisópolis, São Paulo - Reprodução

O relatório final da Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo concluiu que as mortes de nove pessoas durante baile funk em Paraisópolis, no final de 2019, decorreram da ação policial desencadeada naquela madrugada, mas cita legítima defesa como excludente de ilicitude para pedir a não punição dos PMs.

O documento assinado pelo presidente do Inquérito Policial Militar, capitão Rafael Oliveira Casella, afirma que os policiais não cometeram crime pois agiram "em legítima defesa própria e de terceiros" ao serem atacados com "garrafas, paus, pedras e demais objetos" por uma turba.

Tal decisão, de acordo com o relatório, teve aval do comando da corporação.
"Aponto o nexo de causalidade entre a ação dos 31 policiais militares averiguados e a morte das nove vítimas na comunidade de Paraisópolis, porém marco que houve excludente de ilicitude da legítima defesa própria e de terceiros", diz trecho do documento obtido pela Folha de S.Paulo.

Leia também:
PM de SP considera lícita a ação em Paraisópolis que terminou com nove mortos
Paraisópolis: familiares de vítimas pedem revisão de protocolo da PM

O termo "excludente de ilicitude" ganhou notoriedade após projeto anticrime do governo Jair Bolsonaro, capitaneado pelo ministro Sergio Moro, que propôs dispositivo para permitir a redução da pena até a metade ou sua não aplicação em casos de ações causadas por "escusável medo, surpresa ou violenta emoção".
Moro, no entanto, chegou a dizer que casos como o de Paraisópolis não seriam enquadrados na proposta de excludente de ilicitude no pacote anticrime –o mecanismo caiu do projeto aprovado.

A legislação brasileira já prevê excludente de ilicitude em algumas hipóteses. No caso de Paraisópolis, como se trata de um inquérito no âmbito militar, a PM utiliza o artigo 42 do Código Penal Militar que, em seu inciso 2º, diz não haver crime quando um ato é praticado em legítima defesa.

O mesmo artigo vê como excludente o fato de o ato ter sido praticado em estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito.É com base nesse documento da Corregedoria, entregue à Justiça Militar no mês passado, que a Polícia Militar solicitou o arquivamento das investigações contra os policiais.
O Ministério Público, porém, pediu novas diligências.

Segundo a versão oficial, os agentes iniciaram a perseguição após ocupantes de uma moto dispararem contra policiais da Rocam (rondas com apoio de motocicletas).

A perseguição se estendeu até uma rua onde se concentravam frequentadores do baile funk, onde, segundo o relato dos policiais, os criminosos se embrenharam pela multidão atirando, o que provocou o corre-corre e o pisoteamento de vítimas.

Os policiais também disseram que foram atacados com paus e pedras pelos frequentadores do baile, sendo necessário acionar apoio. Para resgatar esses policiais militares de moto, ainda segundo a primeira versão do governo paulista, outros PMs foram até o local com viaturas maiores (como as SUVs da Força Tática) e usaram armas não letais, como bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e bala de borracha.

A investigação da Corregedoria não confirmou, no entanto, que foram os disparos dos bandidos que provocaram o tumulto e, assim, as mortes. Como a Folha de S.Paulo revelara, a investigação confirmou que as motos da Rocam já tinham deixado o fluxo do baile funk para evitar conflito, mas voltaram para ajudar a resgatar os PMs da Força Tática. "Assim, para preservarem suas integridades físicas, bem como evitar qualquer tipo de confronto, optaram por voltar e solicitar apoio policial", diz trecho do documento.

O ponto considerado chave para o episódio é quando a primeira viatura da Força Tática, que foi ao local apoiar a Rocam, tem um vidro quebrado. "Acuados, os militares sozinhos naquele momento tentam utilizar meios não letais a fim de repelir uma injusta agressão pontual e iminente, zelando pela integridade física daquela equipe."

Na sequência, chegam mais reforços, e começa a confusão no fluxo do baile funk. "Nesse momento há um tumulto generalizado naquele local, assim iniciando uma evasão em massa. Nesta ocasião, por falta de conhecimento do local, bem como interesse em fugir daquela autoridade pública, muitas pessoas optaram por adentrar a uma viela (viela do Louro) existente na rua Ernest Renan, entre as ruas Herbert Spencer e Rodolf Lotze, onde houve o pisoteamento e aglomeração."

É por esse motivo que o oficial da Corregedoria viu a relação de causalidade entre as mortes e a ação dos policiais. O documento diz não ser possível individualizar as condutas na ação nem ter certeza de que os PMs fecharam as principais vias de fuga, conforme apontaram as testemunhas civis na investigação.

Além de citar os PMs como responsáveis pelas mortes, o documento indica corresponsáveis pela tragédia, entre eles os próprios responsáveis pelos jovens. "Notadamente, todos negligenciaram o 'pátrio poder' e subsidiariamente têm suas parcelas de responsabilidades pela omissão na guarda dos menores."

Apesar de pedir arquivamento da investigação contra os PMs sobre as mortes, o relatório lista falhas operacionais dos agentes, como GPS das viaturas desligados, e sugere abrir investigação.

Ação teve apagão tecnológico
A operação da Polícia Militar de São Paulo que resultou na morte nove pessoas em Paraisópolis teve um apagão tecnológico, com GPS de carros desligados, desconexão com a Central de Operações (Copom) e contato entre policiais via celular, diz a Corregedoria.

Segundo relatório do órgão, ao qual a Folha de S.Paulo teve acesso, as viaturas que participaram da operação em Paraisópolis estavam com o sistema de rastreamento desligado –na única vez em que o equipamento foi ligado ele não funcionou.

O acionamento ocorre quando o PM faz o login do tablet ao assumir o serviço e o desliga ao fim do turno. Trata-se de algo obrigatório, "inerente ao serviço de patrulhamento ostensivo, tanto para segurança das equipes quanto para fiscalização". Policiais e oficiais responsáveis por fiscalizar o patrulhamento podem ser punidos se deixarem terminais deslogados.

No meio policial, entende-se que um PM só desliga (ou deixa de ligar) esse sistema de rastreamento quando pretende realizar alguma ação ilegal. O relatório da Corregedoria aponta ainda casos de aparente erro dos GPS. O policial informou ter socorrido uma das vítimas até o hospital, mas o sistema informa que a viatura não saiu do lugar.

Indagada a respeito das falhas listadas no relatório da Corregedoria, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo afirmou que o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) apura todas as circunstâncias relativas aos fatos, incluindo as responsabilidades civis.

"Os laudos periciais já concluídos, de acordo com a autoridade policial, demonstram que as vítimas têm traumas compatíveis com pisoteamento. O conjunto probatório pericial é analisado pelo DHPP", disse o organismo em nota.

"A Corregedoria da PM esclarece que, após o pedido de cota ministerial, novas apurações relativas ao referido inquérito policial militar estão em andamento e seguem em sigilo [...] Após a conclusão dessas diligências, o IPM [inquérito] será remetido à Justiça Militar e ao Ministério Público, órgãos competentes para a análise."

Ainda de acordo com o relatório da Corregedoria, os policiais da Rocam (motos) perseguiram bandidos em uma moto XT 660 até o fluxo do baile. Gravações do Copom, feitas naquela madrugada, confirmam que essa perseguição ocorreu e se tornam evidências favoráveis aos PMs. "Copom, Herbert Spencer, 660 preta jogou para cima da equipe", disseram os policiais, usando jargão, conforme o registro. "Jogou para cima" significa atirar.

Os policiais da Rocam citam que, para evitar confrontos, saíram do local, quando "tentaram modular com o Copom, porém não obtiveram êxito". Assim, se verdadeira essa versão, houve uma pane no centro de operações ou na viatura policial.

O texto também diz que, durante a ação, a oficial responsável pelos policiais "solicita para que as viaturas aguardassem para que entrassem juntos naquele local [baile funk]".

Porém, a moto da Rocam "já estava pela rua Ernest Renan com Rodolf Lotze, sendo agredida pelos frequentadores e já tinham iniciado o lançamento de granadas, bem como efetuado tiros com munição de impacto controlado".

Outra informação que aparece no documento é a de que a oficial responsável pela operação usou o telefone celular, não o rádio, para dar ordens aos policiais. "Após alguns minutos, a 2ª tenente PM Aline ligou no celular do declarante, pedindo um QSO [contato pessoal] na viela da rua Ernest Renan, onde havia nove pessoas feridas aparentemente por pisoteamento" diz o documento.

O relatório também informa que, embora policiais tenham afirmado não ter feito disparos com armas de fogo, o teste para as armas deu positivo para disparo recente.

A perícia não cita quão recente, e a Corregedoria menciona que os policiais fizeram treinos com as armas, em datas diferentes, entre fevereiro e novembro de 2019. Outro ponto levantado foi o suposto uso de morteiros para fogos de artifício contra os frequentadores do baile funk, com base em imagens captadas no local.

"Morteiros não fazem parte dos equipamentos de dotação da Polícia Militar do Estado São Paulo, e se confirmado seu uso em uma ação desta magnitude, configuraria flagrante imprudência daqueles que a utilizaram."

No entanto, como as imagens foram classificadas como de baixa qualidade, o laudo pericial é inconclusivo. "Pela insuficiência de provas, não se pode imputar a nenhum policial militar tal ação que ora seria imprudente", diz o documento.

A Corregedoria tampouco chegou a conclusões sobre imagens de violência policial disseminadas online: "Não foi possível identificar todas as ocasiões falta de elementos característicos do tipo data/hora/local, por isso algumas inconclusivas e aquelas que foram possíveis suas identificações, instaurou-se inquérito policial", afirma o texto.

O relatório traz vários depoimentos de testemunhas civis, que relatam as agressões, mas não solicita a responsabilização dos policiais. A única menção a apuração disciplinar é quando se relata que os terminais de dados móveis, como GPS, estavam deslogados durante a ocorrência.