Pernambuco tem gastronomia de heranças culturais

As cidades de Olinda e Recife, que fazem aniversário no dia 12/3, são grandes representantes da mesa pernambucana. Conheça a origem dessa gastronomia de sotaque, marcada por fortes heranças históricas

Farinha de mandioca é base alimentar de influência indígena - Léo Malafaia/Folha de Pernambuco

Visitar a Capital pernambucana e não provar o cozido ou dispensar a cartola de sobremesa é o mesmo que vir ao Recife e não aproveitar a praia num dia de calor. O mesmo para quem vai a Olinda sem a disposição de subir ladeira rumo às tapioqueiras do Alto da Sé. A gastronomia no Estado, formada por elementos típicos como esses, desenha um ritual obrigatório para quem quer se envolver com bases históricas.

“A marca da cultura pernambucana é sobretudo afirmativa. Forte. Espelhando o irreditismo dos movimentos sociais que marcaram nossa história, imagem e semelhança de nossa gente”, diz a pesquisadora e colunista deste caderno, Maria Lecticia Cavalcanti em seu livro “História dos sabores pernambucanos”. Esse paladar foi sendo formado aos poucos, especialmente pelo equilíbrio das culturas indígena, portuguesa e africana de maneira complementar. Ainda segundo Lecticia, “uma das maneiras de compreender a terra em que vivemos é através da culinária. A partir de receitas que têm a marca da nossa história, que resistem ao tempo, que não transigem com as modas. Que refletem a alma, o temperamento e o jeito de ser de nossa gente. Para mim, o fascínio foi sempre reproduzir pratos do passado. Quase como uma arqueologia dos sabores”.

Se pegarmos as referências da cozinha portuguesa, acontece o que o secretário estadual de Cultura, Gilberto Freyre Neto, aponta como uma interferência que vai além da territorialidade. “Portugal vem com a riqueza da cultura árabe, que permaneceu muito tempo na Península Ibérica, trazendo ainda o verve do norte da África e até a tradição islâmica, como na diversidade de usos das especiarias do Oriente. Essa miscigenação favorece muito a utilização de algumas técnicas no Brasil, seja pela influência ou pela própria delícia que é”, diz, ao refletir, por exemplo, sobre a origem do cozido, que jamais chegaria à mesa sem um toque de sal, pimenta, cominho e ervas frescas. Os hábitos marcantes do colonizador, fáceis de perceber nos dias atuais, são frutos de misturas como a dos povos germânicos, de quem o português aprendeu a fabricação de queijo. Dos mouros, souberam lidar com a plantação de laranja, cana-de-açúcar e arroz.

Por outro lado, “não havia tempero nas panelas indígenas”, já disse o pesquisador Luís da Câmara Cascudo. O cardápio incluía raízes como batata-doce e cará, além de grãos como milho e feijão. Isso sem falar na mandioca, considerada a comida principal da dieta indígena, na versão de farinha pura, mingau, pirão e bebidas fermentadas. Tudo era armazenado ou servido a partir de utensílios de fabricação própria, como pilão, panelas de barro, cabaças e cestas de fibra.

A partir do século 15, o negro foi chegando ao Brasil com a culinária oprimida pela condição da senzala. Eles tinham domínio das técnicas de assados, cozidos e grelhados. Ainda no livro “História dos sabores pernambucanos”, um trecho diz que não gostavam de galinha, preferiam o arroz - plantado aqui pelos portugueses. De terras africanas também chegaram açafrão, azeite de dendê, quiabo e coco. Deles vieram a técnica de usar esse leite de coco útil em receitas como pamonha, munguzá e angu. O acarajé e a moqueca de peixe, por exemplo, são pratos antigos com adaptações locais. A cachaça foi a primeira bebida destilada no Brasil, criada a partir de técnicas africanas.

Portugueses valorizaram as receitas açucaradas - Crédito: Léo Malafaia/Folha de Pernambuco


Terreno para o açúcar
Segundo o antropólogo e pesquisador de gastronomia Raul Lody, o cultivo da cana-de-açúcar foi o grande condutor para a formação de uma cozinha multicultural. “Porque estamos falando da época em que o açúcar era uma especiaria tão valiosa quanto um presente. No século 16, Pernambuco foi o maior produtor no mundo, e isso reforçou o incremento de receitas emblemáticas como o filhós”, aponta, destacando ainda o sentimento de identidade que existe nos pratos açucarados.

Pelas mãos de cozinheiras portuguesas, houve adaptação das receitas para o contexto pernambucano. Açúcar e ovo se tornaram a base de muitas produções, mas também abriram espaço para a farinha de mandioca substituir o trigo em muitos dos bolos regionais. O uso das frutas locais, como a goiaba, também ganhou protagonismo. Que o diga o recheio do bolo de rolo.


Tradição preservada?
Não há como negar que a alimentação é um aspecto cultural. E sendo cultura, ela é viva e cíclica de acordo com o tempo. “O normal é que mude e não tem nada de errado com isso. A gente lembra, no entanto, que existe uma romantização que não acompanha as necessidades da população que consome e produz. As pessoas estão se descobrindo intolerantes à lactose, celíacas e o mercado precisa se adaptar a isso”, opina o gastrônomo e historiador Frederico Toscano.

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Para ele, o único porém é quando a adaptação de uma receita não surge de maneira espontânea, mas com objetivos diretos de um viés ideológico. “Como o que aconteceu com um grupo evangélico baiano ao alterar a matriz cultural do acarajé, que é comida de santo (orixá), para o chamado bolinho de Jesus. Essa transformação não é espontânea e tenta apartar uma população étnica e religiosa”, comentou. A tapioca, por exemplo, é um forte argumento para as transformações inevitáveis. “A original, beiju, tem apenas coco. O recheio com queijo de coalho é algo antigo, mas não se compara. Se o certo é consumir a versão original, não vai comer de Nutella, nem de coalho. Mas a cultura popular se transforma em relação às necessidades das pessoas”, finaliza.