Falta de representatividade: negras não dirigem filmes de grande bilheteria nacional desde 1995

Estas são constatações do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que fez um balanço de 240 filmes nacionais, produzidos entre 1995 e 2018

Adélia Sampaio é considerada a primeira negra a dirigir um longa nacional - Foto: Divulgação

Quando o filme “Amor Maldito” - que retrata a trama de uma lésbica contra a justiça -, estreou em agosto de 1984, sofreu boicote da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) e das empresas de exibição da época. Considerado o primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher negra no País, Adélia Sampaio, o filme foi exibido como uma pornochanchada em apenas oito salas de transmissão no período. Quase 36 anos depois, o cenário audiovisual brasileiro pouco mudou: homens brancos continuam conduzindo as películas de grande repercussão e poucas políticas de incentivo às produções afro-brasileiras foram realizadas durante o período.



Estas são constatações do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que fez um balanço de 240 filmes nacionais, produzidos entre 1995 e 2018. Em 23 anos de análise, nenhuma mulher negra dirigiu um filme de grande bilheteria nacional. “Estamos divulgando a pesquisa desde 2014 e atualizamos frequentemente para mostrar que o cenário vem pouco se alterando. Há dois métodos para a pesquisa: primeiro contabilizamos as pessoas que estão à frente do roteiro, direção e atuação; e depois se faz uma análise de conteúdo para saber se os personagens sofrem com estereótipo ou não”, explica a cientista política e uma das coordenadoras do estudo, Marcia Rangel.

 

Marcia Rangel, uma das responsáveis pela pesquisa - Crédito: Divulgação 

Como consequência da presença de homens brancos à frente da direção, número que chega a 84%, a representação de homens e mulheres negras como personagens também cai. “A gente pode falar como um todo que a área é predominada por diretores e roteiristas brancos que retratam personagens brancos em sua maioria. Percebemos que esses personagens são ricos em detalhes, em classes sociais e em todas posições possíveis. Já quando há pessoas negras à frente da produção, já vimos homens e mulheres em posições que não são estereotipadas”, afirma Rangel.

Xica da Silva, primeiro filme brasileiro protagonizado por uma mulher negra, regado a estereótipos - Crédito: Reprodução 

Segundo a pesquisadora, os estudos servem de base para pressionar os órgãos responsáveis por implementação de políticas públicas raciais para o audiovisual. “A gente já chegou a dialogar com a Ancine (Agência Nacional do Cinema), que nos últimos anos chegou a mapear a distribuição de recursos com recorte racial. Ainda, há 10 anos, A Secretaria do Audiovisual distribuiu editais para a produção de curta-metragens, mas não chega a ser suficiente porque não têm impacto no grande público”, afirma a coordenadora. Procuramos a Ancine para esclarecer sobre a distribuição de recursos com recorte racial, mas até o fechamento da reportagem não houve respostas.

Descolonização das telas

Para a professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da instituição (NEAB), Dayse Moura, a presença de homens e mulheres negras na direção é importante para a descolonização do cinema brasileiro. “Quando estamos falando de homens e mulheres negras no cinema também é preciso destacar que, historicamente, a sociedade brasileira apresenta a população negra é sob o olhar da subalternidade e estereótipos de papéis, ocupando baixo status. Quando a gente se depara com cineastas negras, podemos trazer visibilidade, também, para a população negra. Mostrando de outra perspectiva, sob o ponto de vista do racismo vivenciado e a realidade enfrentada.”, frisa.

Dayse Moura coordena núcleo de estudos afro-brasileiros - Crédito: Divulgação

Em decorrência do racismo estrutural, homens e mulheres negras enfrentam dificuldades na manutenção no ensino superior, além da estigmatização de que algumas áreas não pertencem a esse grupo populacional - a exemplo do cinema. “Há muitas barreiras. Não é porque teve cotas que foram feitos milagres. Houve muitas fraudes quando não havia verificação da autoafirmação e pessoas negras ficaram de fora. Há muitas barreiras para esses sujeitos se manterem, entre elas a econômica, porque a universidade têm um gasto muito grande; e a psíquica e intelectual, porque a universidade também produz muita violência com o sujeito negro”, ressalta Dayse Moura.