Morre Maria Alice Vergueiro, a dama do underground

Atriz, de 85 anos, sofria de Parkison e estava internada no Hospital das Clínicas em SP

Atriz Maria Alice Vergueiro morreu aos 85 anos - Reprodução/Instagram

Morreu nesta quarta a atriz Maria Alice Vergueiro, a dama do underground ou ainda a velha dama indigna, conhecida por seu despudor e suas atuações performáticas no teatro brasileiro. Ela tinha Parkinson e estava internada no Hospital das Clínicas desde segunda-feira (25).

Nascida em São Paulo em 1935, a artista foi uma das fundadoras do Teatro do Ornitorrinco ao lado de Cacá Rosset, companhia que formou um dos repertórios mais populares do teatro brasileiro nos anos 1970 e 1980. Ela é autora de uma carreira amplamente dedicada a um teatro de pesquisa, no qual prevalecem o deboche sobre valores burgueses, o estudo sobre a sexualidade, sobre a estética do grotesco e as teorias voltadas a um teatro popular, derivadas da obra de Bertolt Brecht.

 

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O Teatro do Ornitorrinco, ele próprio foi influenciado pelas teorias de Brecht. Além de atuar, Maria Alice dirigiu espetáculos, como "Why the Horse?", de 2015, escrito em homenagem aos escritores que incluenciaram a trajetória da atriz. No cenário, montavam-se lápides de escritores como Shakespeare, Nelson Rodrigues e Samuel Beckett. Ali, Maria Alice pressentiu a morte e retratou seu próprio velório. Foi sua última criação para o palco.

No início de sua trajetória, a atriz teve formação em pedagogia pela USP nos anos 1960. Depois, passagens por instituições de ensino médio e, posteriormente, a migração para atividades formativas da área teatral. Maria Alice passou a dar aulas na Escola de Artes Dramáticas da USP.

Na universidade, performou em uma peça, "Cabaret da Rainha Louca", em 1974, que chamou atenção por causa de seu temperamento "anárquivo", como ela próprio o definiria mais tarde. Na ocasião, uma comissão de sindicância foi aberta na USP para apurar a performance de Maria Alice nesse espetáculo. Ela contracenava com o ator Cacá Rosset, que havia sido seu aluno, e simulavam sexo anal, enquanto eles gritavam "Tudo pelo teatro brasileiro".

Maria Alice chegou a ser afastada da instituição de ensino na ocasião. Mas, como conta no livro "Teatro do Ornitorrinco", acabou sendo preservada da expulsão com ajuda de alunos da universidade. Ela funda o Teatro do Ornitorrinco ao lado de Rosset e Luiz Galizia em 1977. Em 1985, o grupo cria um de seus espetáculos mais populares, "Ubu / Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes", trabalho baseado no ciclo Ubu de Alfred Jarry e que reunia circo, dança, teatro e música, com cenário da arquiteta Lina Bo Bardi. A peça ficou 27 meses em cartaz e foi assistida por mais de 350.000 pessoas.

Amigos próximos de Maria Alice já disseram que o afastamente da pedagogia, ainda em 1974, fez com que ela passasse a se dedicar mais à vida de artista. No ano seguinte, Maria Alice integrou o elenco de "Galileu Galilei", peça de Bertolt Brecht montada pelo diretor do Teatro Oficina, José Celso.

Naquela mesma década de 1970, contava a atriz em entrevistas e rodas de amigos, traficou 4.000 ácidos da Califórnia, e vendeu todo o lote para pagar aluguéis do Teatro Oficina. Maria Alice associava o uso do LSD e de outras drogas à expansão de percepções, algo defendido entre outros artistas que viveram a cultura hippie dos anos 1970 e que se abasteciam de teorias ora ligada a neurologia e à ciência, ora aos enigmas do tarô e das experiências místicas. Pertencia a um grupo em que a noção de loucura deixava de ser tratada apenas como questão médica, como disse em entrevista a este repórter.

Maria Alice voltou a ficar conhecidíssima entre jovens quando atuou no vídeo cômico "Tapa na Pantera" (2006), falando sobre o consumo da maconha e também sobre problemas de memória. Uma das montagens mais importantes na carreira dela foi para o texto "Mãe Coragem e Seus Filhos", também de Brecht, com direção era de Sergio Ferrara, em 2002.

A partir dali começou a utilizar-se do trabalho como depoimento sobre a própria velhice. Veio, por exemplo, "As Três Velhas", cujo processo de criação foi registrado no documentário "Górgona", de Fábio Furtado e Pedro Jezler. Ali é possível ver também a proximidade da atriz com artistas de verve semelhante, entre eles os atores Luciano Chirolli, que morou com Maria Alice nos últimos anos, e Pascoal da Conceição.