Pandemia aumenta violência de gênero e adia pautas feministas na América Latina

Na Bolívia, o país com mais casos de violência doméstica (incluindo agressões) na América do Sul, foram assassinadas nove mulheres apenas no período entre 21 de março e 21 de maio

Caso de violência contra mulher - Foto: Felipe Ribeiro/Arquivo Folha

A quarentena havia apenas começado na Colômbia quando, no dia 25 de março, na cidade litorânea de Cartagena, um homem matou a tiros a mulher, a cunhada e a sogra, que viviam com ele.

Alguns dias depois, foi a vez de Cristina Iglesias e sua filha de sete anos, assassinadas pelo companheiro dela na periferia de Buenos Aires. As duas foram esfaqueadas e seus corpos, deixados um em cima do outro, no sofá da sala. Horas depois, o assassino se entregou.

Assim como aconteceu na Europa, a pandemia do coronavírus tem agravado a violência doméstica e os feminicídios na América Latina. Com o confinamento obrigatório, esses números aumentaram em vários países, como Peru, Bolívia, Argentina e México, segundo dados oficiais e de entidades de direitos da mulher.

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No México, o centro de ligações telefônicas de emergência contra a violência de gênero do governo registrou um aumento de 80% entre os meses de fevereiro e abril.

Em resposta, o presidente Andrés Manuel López Obrador lançou uma campanha que enfureceu feministas. Ela se chama "Conte Até Dez", pedindo que "as pessoas respirem fundo e pensem antes de brigar com um familiar".

Para Wendy Figueroa, diretora da ONG Red Nacional de Refugios, a campanha "é um retrocesso, além de passar uma mensagem dupla. Um homem que quer bater numa mulher é um agressor, e não interessa se conta até dez ou não. E a campanha também soa como se a mulher tivesse de contar até dez e ficar calada", disse à Folha.

Na Bolívia, o país com mais casos de violência doméstica (incluindo agressões) na América do Sul, foram assassinadas nove mulheres apenas no período entre 21 de março e 21 de maio, um número 20% maior que o mesmo período no ano passado, segundo a Procuradoria.

No Peru, em oito semanas de quarentena, houve 12 feminicídios e 226 estupros. Destes últimos, 132 foram contra meninas menores de idade. O número é o dobro em relação a 2019.

Na Argentina, onde o movimento contra violência de gênero Ni Una Menos completou cinco anos nesta terça-feira (3), foram registradas, entre 1o de janeiro e 30 de maio, 140 mortes violentas de mulheres, segundo a ONG Observatório Nacional Mumalá (Mulheres da Mátria Latinoamericana).

Para a escritora e ativista feminista argentina Claudia Piñeiro, a pandemia não deveria adiar as pautas de gênero, e sim fazer com que sejam tratadas com ainda mais urgência. "Concordamos que a pandemia seja uma prioridade, mas não queremos a agenda da mulher na gaveta. É preciso encaminhar ao Congresso, como estava programado para o começo do ano, a lei do aborto, assim como ampliar a proteção para as mulheres vulneráveis e combater a violência de gênero", diz.

Ela acrescenta que, mesmo nos casos em que o aborto é garantido na Argentina (risco de morte da mãe, estupro e má-formação do feto), ele vem sendo realizado com mais dificuldade. "As mulheres têm mais medo de buscar ajuda, de se expor, é preciso dar garantias para que busquem este que é um direito delas."

Na Cidade do México, onde o aborto é legal até a 12a semana de gravidez, tem havido atraso no atendimento, o que faz com que a interrupção, em muitos casos, deixe de ser possível. A Anistia Internacional pediu que, durante a pandemia, os países sejam "mais flexíveis com relação aos prazos das legislações de aborto".

Organismos internacionais também vêm chamando a atenção de governos da região para a necessidade de dar atenção às mulheres durante a pandemia. Relatório da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) afirma que, no contexto do agravamento da crise econômica que afetará a região no pós-pandemia, as mulheres devem ser as mais atingidas.

"A desigualdade que já enfrentam as tornará ainda mais vulneráveis. O trabalho da mulher, em geral, é mais precário do que o do homem. A possibilidade de que percam o emprego as coloca em posição de submissão, além de se transformarem em responsáveis por filhos e pelos maiores de idade, expondo-se mais ao risco de se contaminar. É urgente que existam medidas de emergência para proteger as mulheres", diz a mexicana Alícia Bárcena, secretária-geral da entidade.

Já a diretora para as Américas da Anistia Internacional, Érika Guevara Rosas, disse que "os Estados latino-americanos têm a obrigação de proteger todas as mulheres, sem diferença de sua ocupação, da violência e da precarização trabalhista".

Na maioria dos países, também há uma preocupação dos movimentos feministas com as empregadas domésticas. Segunto a OIT (Organização Internacional do Trabalho), há, na América Latina 18 milhões de mulheres que atuam nessa profissão, sendo que 71% delas são informais.

Na Colômbia, segundo o sindicato nacional dos trabalhadoras domésticas, mais de 550 mil já perderam o emprego.

No México, uma campanha foi iniciada pelo cineasta Alfonso Cuarón, diretor de "Roma", filme que retratou a vida de uma empregada doméstica no México de sua infância.

"É nossa responsabilidade como empregadores pagar os salários das trabalhadoras domésticas enquanto elas não podem trabalhar. Vivemos um momento de grande incerteza", declarou. No México, segundo o Centro de Apoio e Capacitação das Empregadas do Lar (Caceh), já há 2 milhões de domésticas sem trabalhar desde o início da pandemia.

A Anistia também chamou a atenção para a necessidade de regulamentar as trabalhadoras sexuais, devido "às violações de direitos humanos no contexto dos estados de exceção dispostos pelos governos".

Segundo a entidade, 98% das trabalhadoras sexuais são o principal sustento de seus lares, "e delas dependem os orçamentos de milhares de famílias", diz Guevara Rosas.

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