Briga entre Anitta e Leo Dias diz muito sobre a indústria da fofoca na era da internet

Campeão de audiência, barraco entre cantora e seu biógrafo traz reflexões sobre jornalismo de celebridades no mundo atual

Anitta, cantora - Reprodução/Instagram

No dia em que as imagens e declarações recheadas de palavrões de uma agora mais que polêmica reunião do presidente Jair Bolsonaro e seu gabinete invadiram os sites, jornais e noticiários de televisão no final de maio, era difícil imaginar outra notícia que pudesse roubar tão cedo os holofotes e os pontos de audiência.

Mas uma troca de farpas envolvendo áudios vazados entre Anitta e o seu biógrafo, o blogueiro de celebridades Leo Dias, logo ofuscou os impropérios do presidente, que distribuía insultos a desafetos, como os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro, chamados por ele de "bosta" e "estume", nesta ordem.

Só no site deste jornal, a briga da estrela pop com seu mais novo inimigo público número um chegou a registrar quatro vezes mais acessos do que as notícias sobre aquele acalorado encontro no Palácio do Planalto.

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Os números mostram como, para parte da população, a briga de uma celebridade musical contra um jornalista gera mais interesse do que uma reunião política que pode mudar os rumos do país em meio a uma pandemia que infectou milhões pelo mundo e já matou mais de 34 mil brasileiros. Também mostram que uma indústria, ao contrário de todas as outras, resiste à crise do coronavírus - a da fofoca.

Na semana passada, a Justiça acatou pedido de Anitta para que Leo Dias não pudesse nem mais citar seu nome. Nem ela nem o blogueiro aceitaram dar entrevistas a este repórter nos últimos dias –outros jornalistas de celebridades e assessores de famosos aceitaram falar, mas pediram que seus nomes fossem mantidos em sigilo.

Esse é só mais um capítulo numa longa tradição de embates entre o jornalismo e as celebridades que são alçadas a manchetes, quer queiram, quer não. Desde "A Doce Vida", clássico de Federico Fellini rodado há seis décadas que traz entre seus personagens um fotógrafo de nome Papparazzo, a indústria costuma retratar os jornalistas como predadores vorazes e as personalidades famosas como as suas vítimas.

É um ponto de vista que faz sentido, e que teve seu auge em 1997, com a trágica morte da princesa Diana e de seu namorado Dodi Al-Fayed, que bateu o carro num túnel de Paris quando tentavam escapar da perseguição de fotógrafos em motocicletas. Os tabloides britânicos, como Daily Mirror e The Sun, contudo, nunca fecharam as suas portas e ainda hoje evaporam das bancas.

É um filão da imprensa que atinge grande audiência e que não pode ser desprezado na contabilidade. Quase todos os portais e redes de TV têm suas colunas e programas que tratam, bem ou mal, desse assunto.

Mas o caso de Anitta é um exemplo de como as entranhas desse jornalismo são mais complexas. Primeiro, há uma simbiose clara entre a cantora e Leo Dias desde que ele escreveu a biografia "Anitta Furacão", no ano passado. Mesmo anunciada como "não autorizada", a obra é extremamente laudatória e alguns sites de celebridades a descreveram como trabalho de um "jornalista amigo da cantora".

A briga entre eles mostrou mais. A cantora era, além de fonte de notícias sobre si mesma, uma informante de fofocas sobre colegas. Num post vazado por Dias, Anitta fala sobre um suposto caso extraconjugal da atriz Marina Ruy Barbosa e o pressiona a publicar a história. Ela se defendeu dizendo que era chantageada por Dias para que lhe fornecesse informações, sob pena de ter a sua carreira destruída.

Isso chocou dois jornalistas de celebridades ouvidos em anonimato. Segundo eles, esse tipo de relação com uma fonte do nível de Anitta, mesmo que desejada, é praticamente impossível de se conseguir, principalmente se você for seguir a ética jornalística.

Segundo uma jornalista que apresenta um programa do gênero na televisão, houve uma mudança brutal nos últimos anos depois do surgimento da internet e das redes sociais. Nos anos 2000, as celebridades corriam atrás dos jornais para plantar notas favoráveis a eles em colunas sociais.

Hoje, artistas precisam só de suas plataformas online para fazer autopromoção. Isso faz com que tenham dificuldade de entender os princípios que regem o jornalismo, seja ele de celebridades ou político. Mais ou menos como Bolsonaro faz quando diz que a imprensa que não o adula é lixo.

De acordo com um repórter que escreve em dois grandes jornais brasileiros, muitas colunas hoje servem só como uma curadoria do Instagram. Ou seja, o jornalista vê o que as celebridades estão postando e pinçam as melhores "notícias" para seus leitores.

O próprio colunista admitiu que faz exatamente isso, por não ter estômago para ficar correndo atrás dos famosos e preferir gastar seu tempo em apuração de notícias que considera mais relevantes, como o mercado de televisão ou a movimentação de gravadoras musicais.

A apresentadora de TV lembra que a apuração séria neste gênero de jornalismo é tão ou mais difícil do que na reportagem econômica, por exemplo. Segundo ela, é mais duro saber quanto Wesley Safadão paga de pensão para sua ex-mulher do que descobrir qual será a nova taxa de juros a ser divulgada pelo Banco Central.

Quando um repórter resolve bater de frente, a celebridade não costuma entender como aquilo pode ser possível. Foi o caso de Quentin Tarantino há oito anos quando foi pressionado por um repórter de televisão a respeito da violência contra escravos mostrada no filme "Django Livre".

O diretor primeiro disse que recusava a questão. Em seguida, mais irritado, sentenciou "estou aqui para vender meu filme, isso [a entrevista] é um comercial para meu filme, não se engane a respeito disso".

Nos últimos tempos, para piorar as coisas, a internet produziu uma nova modalidade de divulgador de informações que, para a maior parte dos leitores, se confunde com os jornalistas. São os youtubers e blogueiros que muitas vezes não têm as noções básicas da profissão.

Uma assessora de imprensa de algumas das maiores estrelas do país conta que passa várias horas por semana correndo atrás desses divulgadores para retificar informações que não foram checadas. Muitos deles, ela diz, nem fazem questão de ouvir o outro lado da informação.

Segundo a jornalista de TV, a questão é óbvia. Um repórter jamais deve se considerar amigo de um famoso. "Nós somos superdescartáveis", ela diz. "Interessamos aos artistas por nossa posição e, quando substituídos, somos esquecidos."