Crítica

Spike Lee consolida retorno à boa forma com 'Destacamento Blood'

O longa, que foi selecionado para estrear no Festival de Cannes, chega à grade da Netflix nesta sexta (12)

Cena do Filme 'Destacamento Blood' de Spike Lee - Divulgação

Na virada dos anos 1960 para os 1970, assolado por uma depressão severa que o levou a uma tentativa de suicídio, Marvin Gaye se isolou no estúdio da Motown, em Detroit, e gravou o soturno "What's Going On". No disco, o cantor de soul trocava os duetos românticos que embalaram casais brancos na década anterior por composições melancólicas e de cunho social, que ecoavam a turbulência dos embates por igualdade racial.

Inspirado pelas cartas que trocava com o irmão militar, compôs uma obra conceitual que adota o ponto de vista inconformado de um veterano da Guerra do Vietnã. Não à toa, os versos desse álbum embalam boa parte dos 156 minutos de duração do filme "Destacamento Blood", visão visceral do cineasta Spike Lee sobre como o conflito militar, maior divisor cultural da história americana na segunda metade do século 20, afetou a vida dos homens negros. O longa, que foi selecionado para estrear no Festival de Cannes, suspenso pela pandemia, chega à grade da Netflix nesta sexta (12).

A tese do diretor está escancarada no discurso de Malcolm X que abre o longa, comparando os negros obrigados a lutar na guerra àqueles que foram escravizados nos campos de algodão do sul, isto é, levados a servir a uma causa que não a própria.

Os quatro protagonistas da trama são sobreviventes da política que tornou afro-americanos "bucha de canhão" no sudeste asiático -um terço dos combatentes no Vietnã era composto por soldados negros, embora formassem não mais do que 11% da população dos Estados Unidos. Nos dias atuais, o quarteto retorna a Ho Chi Minh, outrora Saigon, disposto a encontrar uma arca cheia de ouro que eles esconderam durante a guerra e a achar os restos mortais de Stormin' Norman (Chadwick Boseman), líder do destacamento de que fizeram parte e uma espécie de mentor politizado dos quatro -"nosso Malcolm e nosso Martin", como descreve um deles.

Quase 50 anos após os combates, cada um carrega as próprias chagas, que vão da pobreza ao vício em opioides. Nenhum encarna melhor essas feridas do que o traumatizado Paul (Delroy Lindo), um republicano pró-Trump que vive às turras com o filho, o professor de estudos afro-americanos David (Jonathan Majors). A derrocada psíquica de Paul, que se torna mais insano conforme o ambiente se torna mais inóspito, é o ponto alto da trama.



Estar de volta ao Vietnã, é claro, reavivará o ressentimento de quem se deu conta que estava morrendo nas selvas da Indochina em nome de um país que permitia que, em seu próprio território, Martin Luther King fosse assassinado e Angela Davis, encarcerada. Não fosse o tema do racismo, "Destacamento Blood" poderia não passar de uma obra anódina. Na primeira versão, escrita por Danny Bilson e Paul De Meo, os protagonistas eram brancos, assim como os roteiristas.

Foi ao chegar a Spike Lee que o roteiro ganhou a sua principal camada. Lançado enquanto protestos contra a brutalidade policial varrem as metrópoles americanas, o longa faz menções ao Black Lives Matter que soam mais orgânicas do que as referências aos atuais supremacistas brancos que o cineasta inseriu em "Infiltrado na Klan", seu título anterior.

Nesse sentido, salvo um ou outro tropeço do roteiro que prejudicam o filme a partir de sua metade, "Destacamento Blood" consolida o retorno do diretor à boa forma dos tempos de "Faça a Coisa Certa", longa que em 1989 já antevia os atuais protestos ao encenar uma revolta contra a morte de outro sujeito negro asfixiado pela polícia, no caso, o personagem Radio Raheem.

Na época de seu lançamento, boa parte da crítica cinematográfica torceu o nariz para o filme e argumentou que seu lançamento poderia incitar a violência. De lá para cá, Lee sedimentou sua carreira como o maior cronista das tensões raciais na América em filmes como "Febre da Selva" e a cinebiografia "Malcolm X" que, ele diz, jamais seria feita por um grande estúdio hoje em dia.

Mais recentemente, ele tem apurado o seu olhar crítico para a forma como Hollywood buscou embranquecer a história dos Estados Unidos -não custa lembrar que um dos primeiros longas-metragens de todos os tempos, "O Nascimento de uma Nação", dirigido por D.W. Griffith e lançado em 1915, é uma peça racista de ode à Ku Klux Klan.

Lee já havia desancado "...E o Vento Levou" em "Infiltrado na Klan". Em "Destacamento Blood", ele mira as revanches sanguinolentas de "Rambo" e "Braddock", tentativas de reabilitar o moral da superpotência que havia levado uma surra dos vietcongues. E ao prestar duas homenagens a "Apocalypse Now", o mais conhecido retrato cinematográfico da Guerra do Vietnã, faz indagar por que há tão poucos registros desse conflito sob o ponto de vista daqueles que foram um terço do total de combatentes.

Nesse sentido, Spike Lee é uma espécie de anti-Quentin Tarantino, seu superestimado desafeto. Enquanto o diretor de "Pulp Fiction" usa seus filmes para reconstruir os fatos sempre sob uma lente pueril e "americanocêntrica"-que o diga o Hitler metralhado de "Bastardos Inglórios"-, seu colega nova-iorquino usa o cinema para reabilitar a história