Afrobeat: o legado de Fela Kuti presente nas novas gerações da música africana
O gênero musical mistura high life, música iorubá, funk, jazz e outros ritmos africanos
As últimas mobilizações antirracistas, que saíram dos Estados Unidos (EUA) e tomaram o mundo há quase um mês, reacenderam uma necessidade proposta pelos movimentos negros há décadas: centralizar nossas questões e aspectos culturais no afrocentrismo. Há quase 50 anos, num contexto semelhante ao de luta pelos Direitos Civis no país norte-americano, o musicista nigeriano Fela Kuti (1938-1997) deu origem ao afrobeat - gênero musical que mistura high life, música iorubá, funk, jazz e outros ritmos africanos. Embora tenha diferenças claras entre o que foi proposto inicialmente, o gênero ressurge com influências nas musicalidades africanas e afro-diaspóricas.
"No fim dos anos 1950, Fela vai morar na Inglaterra para estudar medicina, mas lá resolve estudar música e forma a banda Koola Lobitos para tocar highlife com outros nigerianos. Volta a Nigéria em 1963 e reformula o conjunto porém, em 1969, com a guerra civil no país, muda-se para os EUA com os outros integrantes. Nesse momento, há uma virada crucial em seu fazer político estético: tem contato com o movimento Black Power e o radicalismo de políticas negras, principalmente através de sua mentora Sandra Izsadore", explica Rafael de Queiroz, DJ e doutorando no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.
Sandra era militante dos Panteras Negras, partido revolucionário socialista afrocentrado na América, com o qual Fela tem contato durante sua passagem por Los Angeles, na Califórnia. “Agora, além da influência do jazz que já carregava, o soul, o funk e o pensamento de Malcolm X vão influenciar a lírica e o ritmo do que viria a ser o Afrobeat. Fela une elementos sonoros da música negra diaspórica com os do continente africano, criando um gênero que é muito influente até hoje, no mundo todo. Ele traz seu ativismo político na luta antirracista, anticolonialista na música ,na banda Africa 70, com Tony Allen - o qual ele credita a batida do afrobeat. No gênero, ele usa a voz contra o imperialismo, contra o racismo e a posição das pessoas negras.”, afirma Rafael, que é pesquisador da música do Atlântico Negro.
Africanização
Misturando high life, funk, jazz e percussão africana, o afrobeat ficou conhecido pela sua batida inconfundível, entretanto, hoje gera outras questões em torno de suas formas contemporâneas. Atualmente, cantoras e cantores de países anglófonos, como Gana e Nigéria, têm tido destaque numa versão mais eletrônica do gênero. “O termo hoje é usado, basicamente, como um guarda-chuva para outras sonoridades dos países do oeste africano, como Gana e Nigéria. Na verdade, 'afrobeats'. Temos o afropop, que engloba o afrohouse, o soca, highlife, o dancehall, o hiplife e o soca.”, complementa.
Embora não tenha o mesmo teor político discursivo que o próprio Fela, artistas como os nigerianos Yemi Alade, Burna Boy e Wiz Kid têm um papel fundamental na africanização da música - que voltou a ter uma atenção dos grandes circuitos em 2011, quando atingiu as principais paradas britânicas. “Fela, além da musicalidade africana, ele também cantava em outras línguas africanas. Ele tinha origem Iorubá. Esses novos artistas seguem essa linha, não cantam o inglês americano ou britânico. Eles cantam em pidgin, uma língua que mistura elementos das línguas locais com o inglês”, afirma o pesquisador.
Potência Política
Além da própria projeção dos artistas africanos, o gênero musical tem ganho outros contornos nos últimos anos, influenciando a sonoridade de artistas afrodescendentes do outro lado do Atlântico. Eles seguem em resgate à ancestralidade africana, muitas vezes apagadas por processos colonialistas em países como o Brasil e Estados Unidos. “O Afrobeat serve de referência para as nossas gerações. Como foi com o jazz e a construção do gênero Hip Hop. Mas, ao invés de beber dessa cultura negra produzida no Brasil, Jamaica ou Estados Unidos, a gente vai direto para a criação no próprio território africano”, enfatiza Cecília Godoi, cientista social e integrante do projeto Nubian Queen, duo formado com a DJ Makeda.
Para Cecília, que também é pesquisadora da diáspora africana, a música do continente que deu origem à vida no Planeta é uma ferramenta civilizatória. “A música tem a ver com a nossa construção científica. O gênero tem direta ligação intelectual com o pan-africanismo - que tem como princípio a libertação e integração dos povos africanos, em diáspora ou em solo africano, para potencializar suas vozes num projeto de internacionalização política e econômica”, afirma.
Sucesso no resgate
Com a expansão dos artistas africanos e de circuitos musicais próprios - como o Afrochella, em Gana -, o gênero tem tomado alguns estilos musicais, como o R&b, pop, rap e o reggaeton. No Brasil, alguns trabalhos recentes, como o disco homônimo da rapper e cantora Drik Barbosa, o “Mundo Manicongo”, de Rincon Sapiência, e o “Capim-cidreira”, do rapper Rael, são exemplos claros desse novo resgate ao continente africano. Nos Estados Unidos, além dos recentes sucessos das paradas, o gênero reacende em músicas dos rappers Goldlink e Swae Lee, e em trabalhos de R&b das cantoras Normani Kordei e Beyoncé. Esta última produziu o disco “The Gift”, com participações de artistas do oeste africano, em uma trilha sonora alternativa ao filme Rei Leão, em 2019.
Distante dessa perspectiva mais anglófona da música africana, o Brasil já tem fortes ligações com a sonoridade da Angola. Um dos exemplos mais claros é com a cantora Titica, uma das maiores expoentes do Kuduro - gênero angolano que integra o afropop. Desde a reaproximação política entre os dois países, que falam o português, a artista tem tido espaço em festivais, como o Rock In Rio, e na colaboração com artistas brasileiros. Nos últimos três anos, ela fez música em conjunto com Pabllo Vittar, em “Come e Baza”; com os soteropolitanos Baiana System e Margareth Menezes, em “Capim Guiné”; e com a paraibana Lucy Alves, em “Sem Juízo”, em parceria com o grupo baiano Attooxxa.