Coronavírus

Mobilidade dentro do 'novo normal'

Diante do novo cenário imposto pela pandemia do coronavírus, a estrutura de deslocamentos das pessoas clama por reconfiguração

Passageiros precisam usar máscaras dentro dos coletivos - Paullo Allmeida/Folha de Pernambuco

Após meses de medidas rigorosas de isolamento para contenção do coronavírus, as atividades econômicas e sociais no mundo estão cuidadosamente sendo retomadas. Consequentemente, as cidades estão voltando a se mover, os carros estão novamente ocupando as vias e o transporte público ganhou novos desafios a serem superados. Apesar de o futuro pós-pandemia da Covid-19 ser incerto, o momento atual é de repensar a mobilidade urbana. Para solucionar alguns problemas na forma como as pessoas se locomovem, certas ações adotadas no enfrentamento à doença podem ser adaptadas.

Para o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco (CAU-PE), Rafael Amaral Tenório, a pandemia permitiu que as pessoas enxergassem a cidade de uma forma até então inimaginável. “Fez a gente perceber vazios, as oportunidades que estávamos deixando passar e como podemos se relacionar de maneira correta, entendendo que não precisamos voltar ao que era na totalidade”, disse. Por outro lado, existe o receio de que algumas pessoas voltem dessa experiência ainda mais individualistas e passem a utilizar os carros com mais frequência. Assim, o que já não dava certo antes do coronavírus tenderá a piorar.

O doutor em economia do transporte Maurício Andrade defende que o governo (municipal e estadual) precisa criar mecanismos para dificultar o uso do automóvel particular. “E fazer isso através dos elementos que já tem na lei de mobilidade. Cobrar pelo uso da via para que fique mais caro usar o carro, ou seja o pedágio urbano, seria uma alternativa. Cobrar uma taxa adicional sobre o imposto de combustível para financiar o transporte público também é outra opção. Temos que abrir o debate para isso”, comenta Andrade, que é professor do Centro de Tecnologia e Geociências (CTG) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Diante deste cenário, especialistas defendem que o poder público precisa urgentemente rever a infraestrutura das cidades e fazer mudanças em alguns modelos de transporte que estão saturados e contribuem com a disseminação do vírus. “A curto prazo terá que ser aumentada a velocidade dos ônibus. Assim eu posso fazer mais viagens e os coletivos estariam menos cheios. Para isso é obrigado que se tenha cada vez mais faixas exclusivas para o transporte público. A cidade vai ter que assumir isso como uma prioridade. Aumentar a velocidade dos ônibus para que a oferta não fique tão mais cara”, disse o professor do CTG da UFPE. 

Moradora do bairro de San Martin, na Zona Oeste do Recife, diariamente a recepcionista Jaquelane da Silva, 45, passa cerca de uma hora no ônibus para chegar ao trabalho, em Boa Viagem, Zona Sul. “Se a gente pudesse ir sempre sentado, sem aglomeração, seria o ideal, mas está longe da nossa realidade”, lamentou. Visando evitar a contaminação da Covid-19, um decreto estadual passou a obrigar os ônibus a saírem dos pontos de partida das viagens apenas com todos os passageiros sentados e usando máscara. Porém, durante o percurso outros usuários vão entrando e lotam o coletivo.

Nos terminais, como o de Joana Bezerra, um dos principais do Sistema de Transporte Público de Passageiros (STPP), no Centro do Recife, nas primeiras horas da manhã longas filas de embarque se formam sem o devido distanciamento entre as pessoas. A linha que sai da integração e segue para Boa Viagem era uma das que estava com a parada lotada. Usuários reclamam da pouca quantidade de ônibus em circulação e da demora. “Já que é para todos saírem sentados, deveriam reforçar a frota para evitar que a gente ficasse tanto tempo na fila”, disse a secretária Patrícia Souza, 31 anos.

No Metrô do Recife a situação também é complicada, pois não há qualquer tipo de controle sobre o número de passageiros nos vagões. Enquanto em outros países, como China e Estados Unidos, os assentos têm sido isolados para impor respeito e manter o distanciamento social, aqui isto não ocorre. “A aglomeração no metrô nunca deixou de acontecer. Todos os dias somos obrigados a usar o serviço no aperto mesmo sendo arriscado pegar Covid-19”, comentou o auxiliar de serviços gerais Manoel Antônio, 56. Aí que mora o perigo. Segundo o infectologista Gabriel Serrano, uma pessoa com carga viral alta do coronavírus pode passar até para nove pessoas.

Para o médico o mundo ideal é muito distante da nossa realidade e difícil de pôr em prática, por isto todas as medidas buscadas são para diminuir as chances de transmissão do vírus. “Já que o distanciamento social não é possível dentro de um ônibus lotado, deve-se manter as janelas abertas e todos usarem máscaras. Precisa-se manter a distância de no mínimo dois metros de pessoa para pessoa mesmo dentro do transporte coletivo”, comenta. O infectologista destaca ainda que seria bom ter uma frequência de higienização, ao término de cada viagem nos terminais. “Os passageiros devem sempre ter álcool em gel para limpar as mãos quando não for possível lavá-las”, disse.

Em nota, a CBTU disse que, como medida de prevenção ao coronavírus, a limpeza e higienização das estações e dos trens foram reforçadas desde o mês de março. “Os trens recebem limpeza nos períodos de recolhimento, entre viagens e ao término da operação comercial. Nos intervalos sem operação comercial, as composições recebem também desinfecção profunda”, diz a nota. No caso dos terminais integrados de ônibus, a limpeza continua sendo realizada regularmente, inclusive com a higienização dos coletivos, corrimãos, lavagem das paredes e plataformas de embarque e desembarque e paredes.

Micromobilidade

Antes da Covid-19 colocar o mundo em alerta as cidades estavam em colapso em decorrência da mobilidade urbana convencional que seguia privilegiando o automóvel, menosprezando o transporte coletivo e a micromobilidade (transporte de curta distância). Mudar é necessário. Certamente muita gente não quer voltar à rotina dos congestionamentos. Nesse contexto, novos modais ganham força. “Tínhamos hora para entrar e sair, estávamos voltando aos filmes de Charles Chaplin, virando uma linha de produção. Deve-se comemorar essas decisões bastantes racionais de como se locomover”, avalia o presidente do CAU-PE, Rafael Amaral. 

Ele ressalta que é preciso um esforço multidisciplinar e planejamento. “Fazer em cima da hora é caro, a exemplo dos respiradores que estão sendo comprados às pressas para os pacientes de coronavírus. Precisa ser criado dentro do estado uma força-tarefa, um grupo de trabalho multidisciplinar que não apenas elenque problemas, mas coloque a sua execução dentro de um cronograma financeiro viável”, sugere. Paralelo a isto grupos da sociedade se mobilizam para cobrar mudanças aos gestores públicos, como é o caso da Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife (Ameciclo), que lançou o manifesto “A cidade que urge”.

O documento clama por cidades mais humanas, democráticas e sustentáveis. Que tenham foco na vida e, não, na circulação de automóveis. Que tenham melhores ofertas para escolhas de modos de deslocamento. Com menos poluição e baixo consumo de carbono. “A bicicleta não polui, é ágil e pode garantir 100% que as pessoas vão manter o distanciamento físico. Cidades do mundo inteiro, inclusive aquelas com o mais excelente transporte coletivo, como Paris e Londres, estão migrando para a bicicleta. Ciclovias salvam vias”, argumenta uma das coordenadoras da Ameciclo, Vanessa Santana.

O certo é que a mobilidade não resolvida trava a economia e o crescimento das cidades, por isto deve ser colocada como protagonista nas decisões das autoridades. “Vai dar muito trabalho resolver e haverá muitos conflitos até chegar minimamente a uma situação razoável. Até porque qualquer situação nova, desde que não seja bem pensada, vai trazer custo novo para o sistema”, pondera o doutor em economia do transporte Maurício Andrade, acrescentando que o setor público precisa identificar o que é melhor para a maioria da população. “As pessoas tendo alternativas saberão fazer boas escolhas”, disse Andrade

Financiamento

O transporte público, que já sofria com perdas, será ainda mais evitado por muitos por medo do contágio da Covid-19. Segundo o Grande Recife Consórcio de Transporte, entre os dias 9 e 15 de março, ou seja, antes das medidas restritivas anunciadas pelo Governo do Estado, os ônibus transportaram 7.136.444 de pessoas. Já neste mês de junho, entre os dias 8 e 14, foram transportados 2.384.903 passageiros. Ou seja, houve uma redução de cerca de 70% na demanda. No Metrô do Recife a situação não é muito diferente. De acordo com a Companhia Brasileira de Trens Urbanos, atualmente, o sistema transporta cerca de 35% da demanda anterior ao início da pandemia do coronavírus.

O momento exige uma ampla discussão sobre a mudança na forma de financiamento do transporte por ônibus. Para o secretário de Desenvolvimento Urbano de Pernambuco, Marcelo Bruto, que responde pelo sistema de transporte público na Região Metropolitana do Recife, há dois caminhos. Um deles é achar uma equação financeira que permita melhorar o sistema. “Aí você tem que trabalhar em diferentes fontes. De um lado com a revisão da rede para que ela possa ser mais adequada do que a de hoje. É um trabalho de planejamento no qual são envolvidos dados inteligentes de como as pessoas estão se movimentando”, disse.

Um segundo ponto envolve debater com a sociedade uma forma de a demanda ser melhor dimensionada e mais adequada à oferta. “O que é isso? As pessoas trabalharem com mais flexibilidade de horário, pois tem um horário de pico que é super pressionado e tem uma oferta ociosa fora desse horário. É uma mudança cultural e também de funcionamento de vários segmentos produtivos”, falou Marcelo Bruto. Uma estratégia nesta linha foi utilizada na cidade de Goiânia, em Goiás, para enfrentar a pandemia. Um decreto municipal implantou o escalonamento de horários de trabalho para evitar aglomeração no transporte coletivo.

Um terceiro braço da questão é o financiamento propriamente dito. “A tarifa tem um nível de esgotamento então você tem que buscar outras fontes. Precisamos da força e da capacidade de financiamento do Governo Federal. É muito difícil sair disso sem que a União tenha um papel de coordenação importantíssimo”, disse o secretário. No âmbito local, o gestor defende a possibilidade de buscar novas fontes como em tributações sobre uso de combustível. “Você colocaria certa regulação no transporte individual, reprimindo um pouco o uso, e traz uma parte dessa arrecadação para o transporte público. É um conjunto de variáveis que precisam ser trabalhadas juntas”, falou Bruto.

Para o secretário de Desenvolvimento Urbano de Pernambuco, Marcelo Bruto, neste primeiro momento as medidas emergenciais que estão sendo adotadas minimizam o desconforto dos usuários do transporte público. “Ninguém tem solução mágica para um prazo tão curto. O que vejo em um prazo curto são medidas mitigadoras para a oferta ficar melhor do que antes, adaptação do usuário e das instalações em relação a protocolos de higiene. E essas questões estruturais vão levar um tempo porque elas envolvem financiamento, planejamento, revisão de rede e não é do dia para a noite”, argumenta.