Literatura

Livros infantis se equilibram entre literatura e educação para falar de assédio sexual

É uma tendência que vem com o avanço do movimento MeToo

Literatura infantil em processo de transformação - Foto: Pixabay

A escritora Penélope Martins queria que a protagonista de seu livro "Minha Vida Não É Cor de Rosa" passasse pelas experiências habituais das adolescentes. A descoberta da autonomia, o primeiro namorado, a mudança de escola -o primeiro assédio.

Ainda nas primeiras páginas do livro, a garota de 14 anos é abordada por um homem que, dentro de um carro, finge que vai pedir informação e mostra a ela suas partes íntimas.

"Na primeira vez em que fui vítima desse tipo de situação, eu tinha uns nove anos", diz a autora. "E, se converso sobre esse tema com qualquer grupo, metade das mulheres levanta a mão para dizer 'eu também, eu também'."

O livro, que foi premiado pela Biblioteca Nacional no ano passado, é um dos que abraçam o desafio de falar sobre assédio sexual a um público jovem, em um país onde, a cada 15 minutos, uma criança ou adolescente é vítima de violência sexual, segundo dados da Childhood Brasil.

É uma tendência que vem com o avanço do movimento MeToo -vale lembrar que a expressão surgiu numa corrente que buscava escancarar como o abuso é recorrente na vida das mulheres desde a infância e, muitas vezes, fica encoberto em silêncio.


Enquanto a obra de Martins é direcionada a adolescentes, há outras que buscam abordar a questão para crianças. Um deles é "Leila", do escritor Tino Freitas e da ilustradora Thais Beltrame e que teve colaboração de Elvira Vigna nos primeiros estágios de concepção.

Na fábula, a baleia que dá nome ao livro vai contente à praia quando é importunada pelo polvo Barão, que, sem permissão, mexe em seu biquíni e acaba cortando o longo cabelo dela.

Freitas diz que buscou uma violência para a criança que não fosse explicitamente sexual. "Cortar o cabelo sem que se queira é uma agressão enorme. Se eu falo de abuso de forma clara, sem a metáfora, o que pode acontecer é a criança se sentir mal, com a realidade gritando no ouvido, ou dizer 'isso não me interessa, não me aconteceu'."

A figura da baleia cabeluda leva a uma identificação, mesmo que seja pela curiosidade. E o reino da fantasia permite abordar assuntos duros com segurança, em uma estrutura que emula o poder milenar dos contos de fadas.

No desenrolar do conto, a baleia Leila -uma referência a Leila Diniz- passa por um período de silêncio longo e pesado. Depois de se reerguer, ao encontrar de novo o abusador, ela grita bem alto que não permite aquele contato. "Eu não queria aquele beijo. Eu não gosto da sua companhia. Ninguém pode me tocar contra a minha vontade."

Andrea Taubman foi por caminho semelhante em "Não Me Toca, Seu Boboca!". No livro, a coelha Ritoca se apresenta dizendo que vai contar uma história "meio difícil de entender, muito difícil de falar".

Então conta sobre o Tio Pipoca, que rondava o parquinho onde ela brincava com os amigos e, um dia, chamou a todos para vir a sua casa brincar. Quando ele tenta pegar no seu corpo, ela se alarma -"se for de um jeito suspeito, ninguém deve tocar na gente!"- e berra a frase que dá nome ao livro.

Taubman conta que levou anos lapidando a história, incorporando conteúdo informativo e sugestões de especialistas em proteção à criança, para se blindar ao máximo de equívocos conceituais.

Na primeira versão do livro, por exemplo, a mãe de Ritoca era a grande heroína protetora. Então a autora aprendeu que uma porcentagem das agressões é perpetrada pelas mães -14%, segundo a Childhood Brasil, enquanto os padrastos representam 21%, e os pais, 19%- e que às vezes elas são coniventes com a exploração da criança.

Então decidiu se fiar ao que chama "tripé da autoproteção": gritar, correr, contar. O livro ganhou páginas que se aproximam da cartilha, mais do mundo da educação do que propriamente da literatura, com exemplos de situações a evitar. "Tem muita gente com boas intenções, mas sem o aprofundamento correto, você não consegue fazer uma obra que seja adequada à complexidade da questão", afirma a escritora.

Não dá para imaginar, contudo, que um livro funcione como uma vacina. É raso enxergar a literatura de maneira puramente utilitária. "Nada garante que um livro atinja na criança o objetivo que os adultos esperam", diz Ilan Brenman, escritor e doutor em educação. "Pode ser que uma obra que fale sobre coisas completamente diferentes tenha esse efeito [de detonar uma discussão sobre assédio]. Essa amplitude é a beleza da literatura."

Talvez, por exemplo, o lobo mau de algum conto de fadas possa despertar a lembrança de um abusador no menino ou menina que está ouvindo a história, permitindo à criança começar a falar sobre isso.

O escritor lembra Clarissa Pinkola Estés, autora de "Mulheres que Correm com os Lobos", para comentar a força simbólica dos contos antigos. "Ela fala de uma farmacopeia, uma farmácia de histórias, que trabalha os mais diversos aspectos da alma humana. Se você está passando por uma questão, algum conto vai ajudar. E sendo arte, cada um se apropria do seu jeito."

Penélope Martins faz coro à ideia de que um livro não serve para solucionar nenhum assunto, mas diz que discutir ali um tema tabu como o assédio pode ajudar a tirar isso de baixo do tapete -onde ele estava durante toda a adolescência da escritora de 46 anos.

Nesse sentido, é importante a mediação da leitura por adultos que estejam de fato preparados para ouvir o que as crianças querem discutir. E que tenham a noção de que, no mais das vezes, quem pratica a violência sexual contra elas é alguém conhecido.

"É melhor abordar esses temas num ambiente seguro do que fazer de conta que eles não estão aí', afirma Tino Freitas, reiterando que é preciso que outros autores e editores se motivem a discutir isso com qualidade literária.

"A literatura colabora para construir uma autonomia crítica, para que o leitor possa se pensar como sujeito de direito", acredita Martins. "E ela dá repertório para que eu tenha palavras para dizer quem eu sou, o que eu quero ou não."