Russos aprovam mudança que pode deixar Putin no poder até 2036
Se estiver no poder em 2028, será o mais longevo líder russo moderno, ultrapassando o ditador Josef Stálin (1878-1953)
Vladimir Putin, presidente russo - Wilson Dias/Agência Brasil
Em um resultado previsível, os russo votaram maciçamente a favor de um pacote de mudanças constitucionais que permitirá ao presidente Vladimir Putin ficar no poder após 2024.
O que não é previsível é o caminho daqui até o fim do atual mandato de Putin, que agora poderá concorrer novamente à reeleição e, se vencedor, também em 2030.
Se estiver no poder em 2028, será o mais longevo líder russo moderno, ultrapassando o ditador Josef Stálin (1878-1953).
Segundo dados da Comissão Eleitoral Central, 73% dos russos votaram a favor das mudanças, com 25% das urnas apuradas.
O mesmo percentual fora relatado quando apenas 3% dos votos haviam sido contados, e a votação ainda ocorria na área ocidental dos 11 fusos horários do maior país do mundo.
A entidade afirmou projetar um resultado final próximo disso, horas antes mesmo de as urnas serem fechadas. O comparecimento ficou na casa desejada pelo Kremlin, 65%.
O referendo, que não era exigido para que a manobra do Kremlin aprovada pelo Parlamento e pela Corte Constitucional (o Supremo local) no começo do ano valesse, deu o verniz legalista desejado pelo presidente.
Houve diversas denúncias de fraude, mais do que em eleições presidenciais, segundo a ONG Golos (vozes, em russos), que lida com transparência política.
A votação foi estendida por cinco dias e permitida de forma online nas regiões de Moscou e de Níjni-Novgorod, para evitar aglomerações em meio à pandemia do novo coronavírus.
As denúncias diziam mais respeito a garantir um comparecimento alto por meio de pressão e promessas de vantagens do que de propriamente alterar o voto.
"Se você manipula demais, isso pode levar a protestos, como ocorreu em 2012", disse Samuel Green, diretor do Instituto da Rússia do King's College, de Londres, em um webinar promovido pelo britânico Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.
Naquele ano, Putin enfrentou uma onda de protestos antes de sua volta à Presidência, quando era premiê do governo tutelado de Dmitri Medvedev, seu pupilo hoje caído em desgraça por impopularidade. O motivo havia sido a ostensiva fraude nas eleições parlamentares de 2011.
Segundo informou o consórcio de partidos liberais liderado pelo Iabloko (maçã), pesquisas independentes registraram um empate em Moscou (51% sim, 49% não) e uma derrota de Putin na sua São Petersburgo natal (56% não, 44% sim).
Mas o resultado geral, admitem, seria favorável ao Kremlin de todo modo.
Ou seja, venceu também a apatia do eleitorado com a falta de opções num sistema político dominado por Putin desde 1999, quando tornou-se premiê pela primeira vez - de lá para cá, são mais quatro mandatos presidenciais, além do período Medvedev como primeiro-ministro.
Uma definição bruta foi dada pelo mais rude aliado de Putin, o presidente tchetcheno, Ramzan Kadirov. "Nós precisamos eleger Putin como presidente vitalício. Quem mais está aí para substitui-lo?', questionou na rede social VKontakte, o Facebook russo.
Apesar do cinismo da pergunta, do líder de um lugar em que o comparecimento ao plebiscito foi de 90%, a resposta emudece mesmo membros da oposição. O mais popular dele, o blogueiro Alexei Navalni, não tem apoio eleitoral fora das redes e dos grandes protestos que ajuda a organizar.
Mesmo se tivesse, o sistema putinista se encarregou de evitar o risco ao desqualificá-lo para concorrer em 2018 a presidente sacando uma condenação judicial duvidosa. Navalni apoiou um boicote malsucedido ao referendo.
"Putin ganhou tempo. Se tivesse de lidar com um processo sucessório, acharia difícil. Agora, tudo está em aberto. Mas é visível o gradual endurecimento do controle do regime", afirma Green.
O referendo, um amontoado de 206 emendas para mudar 14 artigos da Constituição russa, é um exemplo disso. Lá estão medidas como a alteração da composição do Supremo local, a possibilidade de demissão de juízes pelo presidente, e uma série de valores conservadores entronizados na Carta.
Nesse último item, dois chamam a atenção. É possível agora criminalizar quem defender uma narrativa que não coadune com a "verdade histórica", naturalmente em sua versão putinista triunfal, da Rússia.
Dispensável dizer que daí para interpretar estudos acadêmicos como dissenso será um passo. E a Constituição agora afirma que apenas homem e mulher formam casamentos, dificultando qualquer mudança legal que venha a permitir a hoje proibida união homossexual.
"Mas ele não pode simplesmente desligar a internet, isso alienaria as pessoas", pondera Green.
O problema para Putin agora é lidar com a galopante crise econômica do país, o terceiro mais atingido no mundo pela Covid-19, e a insatisfação popular –sua aprovação está em altos 59%, a menor de sua carreira.
Curiosamente para um governo autocrático, no esquema russo o presidente precisa manter seu apoio em alta para que as elites a seu redor o apoiem.
A política externa, simbolizada pelas aventuras militares na Ucrânia e na Síria, além de uma coleção de armas nucleares para assustar o Ocidente, não parece hoje dar gás a Putin no campo doméstico.
Isso, para analistas como Denis Volkov, do instituto de pesquisas Levada, obriga o foco nos problemas em casa. E com o petróleo que alimenta a economia russa com preço instável devido à queda de demanda pela pandemia, as coisas ficam difíceis: Putin já prometeu aumento de imposto sobre mais ricos.
"Eles não sabem como resolver a questão da sucessão. A oposição hoje mora no sistema, e um sucessor teria de ser alguém de dentro, que mantenha a elite e possa ganhar eleições", diz o cientista político e sociólogo Green.
No longo prazo, acredita, Putin foi razoavelmente bem-sucedido em construir seu semi-autoritarismo. "É um fenômeno novo, então ele tem de observar coisa semelhantes no mundo, na Turquia, em Israel, em Hong Kong", afirmou.
Ele não descarta, contudo, que em algum momento o líder que poderá ficar até os 83 anos no Kremlin simplesmente não esteja mais no poder.
Enquanto isso, a face que o mundo identifica como a da Rússia permanecerá sendo a de Vladimir Vladimirovitch Putin, o czar do século 21.