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Recifenses adaptam sonhos interrompidos pela pandemia; conheça histórias

Com proposta no exterior suspensa, casal aposta nas redes sociais. Dono de petiscaria muda de negócio e gastróloga espera abrir cafeteria; especialistas explicam como se planejar e cuidar das emoções na quarentena

Marina Amaral e Lucca D'Errico se preparavam para morar nos EUA e projetavam casamento - Arquivo Pessoal

O novo coronavírus veio como um susto. Há quatro meses, o Sars-Cov-2, que se espalhara da China e, àquela altura, já se expandia na Europa e nos Estados Unidos, chegava a Pernambuco. Dos casos iniciais no Recife às primeiras medidas de contenção – interdição dos portos e suspensão de eventos com mais de 500 pessoas –, foram apenas dois dias. Daí para os decretos de fechamento de shoppings, bares, restaurantes, escolas e academias, foi um pulo. No choque de tantas notícias, a maior parte da população teve que se trancar dentro de casa. De uma hora para outra, foi preciso suspender sonhos, antecipar planos e adiar projetos.

A realidade global gera a necessidade de rever os rumos da própria vida e, por mais que pareça encaminhada, não temos total controle sobre ela. O jeito é se adaptar. Uma lição que a designer Marina Amaral, de 23 anos, conheceu muito bem. Ao ser aceita para um trainee em uma empresa de moda em Nova Iorque, a jovem recifense se viu prestes a iniciar o maior salto profissional que imaginou dar. “Desde que eu me formei, no ano passado, havia a possibilidade de fazer esse treinamento. Fui pra lá, me preparei, fiz a entrevista, era o meu sonho. E deu tudo certo, ela [a dona da empresa] disse que ia rolar, seriam três meses de experiência e depois poderia haver um contrato para trabalhar de fato”, conta.

Garantida a vaga, Marina voltou ao Recife e começou a se preparar. Pesquisou sobre a cidade para onde ia se mudar, separou os documentos, fez planos. Alguns deles envolviam outra pessoa. O namorado, Lucca D’Errico, 25, também começou a procurar oportunidades lá fora. Recém-formado em Direito, ele sonha em atuar como mediador de conflitos e se inscreveu em seleções para programas de mestrado nos Estados Unidos. “Eu já estava inscrito e tinha até algumas provas de pré-requisito marcadas, tentando alguma vaga para o segundo semestre ou, caso não fosse possível, para janeiro. Marina ia antes, até para ela sentir como seria o emprego, se ia querer ficar, e eu ia na época de sair o resultado”, explica Lucca.

Não demorou para que vislumbrassem o casamento, e, rumo aos três anos de namoro, deram início ao noivado. Mas esses não eram os planos do mundo. “Quando já estava tudo certo com a minha documentação, começou a estourar o coronavírus por lá. E eles mandaram um e-mail dizendo para me manter em contato, mas que, nessa situação, era impossível”, recorda Marina.

Com o trainee cancelado e sem perspectiva imediata de emprego, o casal teve que rever os planos de vida e readaptá-los à realidade da pandemia. Antes focado nas universidades americanas, Lucca ampliou a busca do mestrado para outros lugares, inclusive no Brasil. No aguardo da oportunidade, os noivos agora se concentram no Instagram. Enquanto ele abriu uma página sobre mediação de conflitos, Terceiro Lado, ela montou com uma ex-colega da faculdade um espaço on-line para consultoria de imagem, o Projeto Conceitua.

“A mediação é a facilitação do diálogo entre as pessoas sobre problemas. Nessa página, dou dicas de como eles podem resolver através de técnicas de negociação. Foi uma página também para me manter atualizado e poder compartilhar esse conteúdo que tanto me interessa”, observa o bacharel em Direito. “Nós duas [Marina e a sócia] temos muito interesse em usar a moda para ajudar as pessoas. Esse sonho de abrir uma loja física de roupa foi deixado de lado por enquanto, então a gente pensou em começar por consultoria, difundir o nosso conhecimento”, detalha a designer.

Na readequação, o casamento também ficou para depois. Mas, intercorrências à parte, a certeza é que sempre buscarão os objetivos juntos. “Precisamos de estabilidade financeira, mas vamos ver o que vai acontecendo. Onde tiver a melhor possibilidade para um dos dois, o outro vai seguir e encontrar algo massa para fazer nesse local”, diz Marina. “A gente está muito alinhado e tenta não ficar com uma ideia fixa na cabeça”, acrescenta Lucca.

Razão e versatilidade
A pandemia transformou os modelos de vida e hábitos do cotidiano. Embora boa parte das mudanças já fosse prevista, a Covid-19 acelerou o processo de digitalização das relações pessoais e de trabalho. E nessa transição, até as oportunidades surgirem e se assentarem de forma mais clara, os prejuízos são inúmeros. Para manter as finanças equilibradas o máximo possível na quarentena, a primeira dica do economista e educador financeiro Bruno Moura é ser racional na minimização dos custos e ter flexibilidade ao olhar para o futuro.

“Muita gente compara o que está acontecendo agora com a situação que ocorreu em 2008 nos Estados Unidos e aqui só chegou em 2015. Naquele caso, era uma reestruturação econômica de seis meses a um ano que depois ia voltar ao normal. Era calculável. Agora não. A gente não sabe como o mundo vai se comportar. As pessoas devem entender que o mundo mudou”, analisa Moura. “Mas não diga que seu sonho foi arruinado pela Covid-19. Ele foi atrasado, modificado, transformado. A pandemia é consequência de uma sociedade hierarquizada, de aglomerações, com poucos hospitais. E isso não é dizer que o vírus é bom, mas sim um catalisador de mudanças. Se puder adiar o evento, a viagem, adia. Se não, adapta”.

Educador financeiro, Bruno Moura (Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco)

Adaptação também é a palavra-chave para os que se sustentam de pequenos negócios de comércio e serviços, atingidos com força pela crise, que não acaba com a retomada. “Hoje o que se fala muito para indicar ao empreendedorismo é a versatilidade. Todo mundo vai perder, mas, assim que passar essa situação pior, aqueles que conseguirem sobreviver serão aqueles que menos vão perder. Quanto vale você segurar o negócio? Se a pessoa tem esse dinheiro livre e crédito disponível para investir, acho que dá. Mas se a pessoa está pensando em contrair dívidas para segurar o sonho, é muito perigoso”, alerta o economista Bruno Moura.

A versatilidade está, inclusive, no apelido que fez o empreendedor Edmilson Borba, 60, conhecido na Bomba do Hemetério, onde mora. Por 27 anos, Tuca Versátil era também o nome da petiscaria que administrava. Mesmo depois desse tempo em que manteve um ponto considerado tradicional na periferia da Zona Norte do Recife, o filho de comerciante nunca abandonou o sonho de abrir a própria mercearia. Pôde, enfim, concretizá-lo no ano passado, ao fazer uma reforma no local onde trabalha. “A procura já não era a mesma, o mercado estava muito saturado e achei por bem fazer a mudança, dar uma injetada na minha vida. Ia acontecer de qualquer maneira, estava no sangue. Agora assumi minha identidade”, declara.

Tuca não se desfez da petiscaria quando deu início ao novo empreendimento. Para não comprometer a renda da família e evitar um desgaste com os clientes mais antigos, continuou tocando os dois negócios simultaneamente até que a mercearia desse o retorno esperado. Em março, veio o coronavírus, e ele teve que fechar o lugar onde servia os petiscos. “Se eu tivesse continuado com o bar, estaria parado, sem entrar renda. E o tipo de comércio que assumi me deu condições de trabalhar porque é de primeira necessidade”, diz. A mulher, Gláucia, também é um ponto de apoio importante. “Meu braço direito e meu braço esquerdo”, define.

Edmilson Borba, o Tuca Versátil, fechou petiscaria e abriu mercearia na Bomba do Hemetério (Foto: Arquivo Pessoal)

Além da versatilidade para os negócios, o microempresário aconselha outros empreendedores das periferias a preservar o foco nos interesses da comunidade. “Tem que ter muita fé, dentro de toda a diversidade das religiões, prevenção para escapar com saúde [do coronavírus] e disposição para buscar alternativas. Inovar, procurar criar e descobrir a necessidade do seu bairro”, recomenda.

Sonhos não envelhecem
A frase acima, celebrizada na segunda estrofe de “Clube da Esquina nº 2”, um clássico da música brasileira composto por Milton Nascimento e os irmãos Lô e Márcio Borges, também serve de mote para contar a história de Andréa Fradique Britto, 56. Ao concluir o curso de gastronomia em 2011, ela, que trabalhava no escritório do marido advogado, deixou-se envolver pelo mercado dos cafés. E foi assim que nasceu o sonho de abrir uma cafeteria perto de onde o casal mora, em Aldeia, Camaragibe. “Há dois anos decidimos sair do estresse de Recife e vendemos o escritório”, lembra. “Um dia, que voltávamos da cidade, vimos um ponto com a placa de ‘Aluga-se’, num anexo do espaço, no km 10. Visualizei o café todinho”.

Logo na partida, os planos enfrentaram o primeiro obstáculo em outubro de 2018, quando o marido, Carlos, descobriu nódulos nos rins. No ano seguinte, enquanto o tratamento seguia, com duas cirurgias em fevereiro e julho, o casal concebia a ideia do novo negócio, o Café Verde Brasil. O estabelecimento, o único de Pernambuco associado à Aliança Internacional das Mulheres do Café (IWCA Brasil), utilizará insumos produzidos por mulheres cafeicultoras. “A ideia é que o café seja torrado todo dia para os clientes verem o processo”, explica Andréa.

Em agosto de 2019, começou a reforma do ponto que alugaram três meses antes. O lugar estava vazio e a cafeteria teve que ser construída do zero. Correram atrás de mobília, decoração, equipamentos. O investimento foi de R$ 76 mil. A obra terminou em dezembro, e os novos empreendedores se dedicaram aos últimos ajustes para a inauguração. Foi quando chegou a pandemia. “Praticamente limpamos o que tínhamos no caixa. Procurei o Sebrae, que tem sido um parceiro muito grande, e estamos negociando um empréstimo com o Banco do Nordeste para comprar a máquina para a torra do café”, relata.

Aliviada com o anúncio da reabertura dos estabelecimentos gastronômicos em 20 de julho, ela projeta a inauguração para agosto. “A ansiedade é enorme, passo noites sem dormir. Mas nada é por acaso. Se eu tivesse aberto antes, teria que demitir funcionários, seria pior”, comenta a gastróloga. A força da amizade ajuda Andréa a manter o sonho de pé, o que a faz lembrar outra canção brasileira. “Eu sempre menciono essa música de Raul Seixas gravada por Zé Ramalho: ‘Sonho que se sonha só / É só um sonho que se sonha só / Mas sonho que se sonha junto é realidade’. Eu tenho muitos amigos que me ajudaram. Se não fossem todos esses parceiros, não conseguiria perseverar”, ressalta.

Psicóloga Anamaria Carneiro diz que é preciso que cada pessoa observe os próprios sentimentos (Foto: Divulgação/CRP-PE)

Saúde mental
A busca dos sonhos e desejos, inevitavelmente, mexe com o bem-estar psíquico, que não pode ser subestimado em nenhum momento histórico, muito menos em uma pandemia. A psicóloga Anamaria Carneiro, do Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco (CRP-PE), observa, entre os sintomas comuns nesta época de quarentena, quadros de ansiedade generalizada e início de depressão, com alto de nível de estresse, impulsionados por sentimentos como angústia, frustração e impotência.

“Porque você estava vendo horizonte bonito e, de repente, vem algo nebuloso. E a gente, enquanto ser humano, precisa de um olhar de esperança e, nesse momento, se dá conta de que não tem esse controle de tudo o tempo todo. Então, a primeira coisa é você observar o que está sentindo. É ansiedade? É medo? Aperto no peito?”, analisa a psicóloga. “Outro pensamento importante nessa situação é constatar que o que a gente está vivendo é novo e diferente. Não está acontecendo só com você, mas com muitas outras pessoas”.

Manter-se informado sobre a realidade do mundo e ter alguém com quem compartilhar as dificuldades também contribuir para achar uma solução. “Falar do que ocorreu é o que, na psicologia, chamamos de elaborar. Você não está criando uma fantasia, mas está nomeando. E é importante nomear, mas não para ficar na queixa. Se estamos passando por esse momento, precisamos passar a mensagem de que também conseguimos sair dele”, recorda Carneiro.