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'Me chamaram para ser a mãe do Renda Brasil', diz relatora do Fundeb

Deputada Professora Dorinha critica ausência do governo em debates e tentativa de usar dinheiro da educação em assistência

Professora Dorinha (DEM-TO) - Câmara dos Deputados

Mesmo após a aprovação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Fundeb na Câmara, na terça-feira (21), a relatora do texto, Professora Dorinha (DEM-TO), diz que ainda não entendeu o posicionamento do governo Jair Bolsonaro sobre o tema.

Isso porque a atual gestão não se envolveu nas discussões, tentou desidratar o texto e depois passou a apoiar uma ampliação do papel da União nos gastos de educação em um volume ainda maior do que se previa antes.

Como relatora, Dorinha liderou a renovação do Fundeb, considerada histórica para a educação por permitir uma expansão dos recursos. Foi também uma derrota para o governo.

Às vésperas da votação, o ministro Paulo Guedes (Economia) tentou adiar a vigência das novas regras e contrabandear, por meio do fundo, recursos para o Renda Brasil, um programa de assistência social que deverá substituir o Bolsa Família.

 



Dorinha diz que a equipe de Guedes tentou convencê-la a abraçar o protagonismo da iniciativa. Ela critica o ministro por não se envolver no tema, tampouco se inteirar dos detalhes do texto.

"Guedes não chamou para si a responsabilidade, e, quando chega dois dias dias antes de votar, veio o tal do Renda Brasil", disse Dorinha à reportagem. "Me chamaram para ser a mãe do Renda Brasil."

A expressão ficou famosa quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chamou a então ministra Dilma Rousseff de "mãe do PAC", o programa de aceleração do crescimento.

Guedes não teve sucesso na empreitada, e houve recuo. Na manhã de terça, o governo tentou obstruir a votação, orientando deputados aliados a evitar quórum para a votação, mas passou a apoiar o relatório da Dorinha depois de conseguir comprometimento do Congresso para criar o Renda Brasil.

"A Câmara não aceitou sair nada do que tinha sido pactuado", disse Dorinha, que ressalta a atuação dos deputados da comissão que analisou o tema, sobretudo dos deputados Bacelar (Pode-BA), Idilvan Alencar (PDT-CE) e Rosa Neide (PT-MT).

"Mas não consigo entender [o governo]. É como se você fosse pedir aumento para o chefe, você chega pedindo R$ 20 e o chefe diz que não pode, que não dá de jeito nenhum, e no final te dá R$ 25."

Procurado, o Ministério da Economia não respondeu até a publicação deste texto.

Principal instrumento de financiamento da educação básica, o Fundeb reúne parcelas de impostos e recebe uma complementação da União para estados e respectivos municípios que não atingem o valor mínimo a ser gasto por aluno no ano.

Sua vigência expira neste ano, daí a necessidade de renovação. O texto agora será analisado no Senado.

O complemento da União atual é de 10% –cerca de R$ 16 bilhões no ano– e a PEC ampliou o valor para 23%, a serem alcançados de forma escalonada até 2026. Até a semana passada, o texto da Dorinha previa 20%.

A deputada também diz não entender a motivação dos únicos sete deputados que votaram contra, todos bolsonaristas, uma vez que o líder do governo, Major Vitor Hugo (PSL-GO), apoiou o texto.

Ela associa o sucesso da votação à mobilização social, sobretudo de prefeituras e estados.

Dorinha não revela se falou com Bolsonaro, embora interlocutores do governo tenham dito que a conversa ocorreu. Ela diz, no entanto, que o presidente se envolveu positivamente. "Ele entrou pelo meio", diz. "Ele foi importante também."

Maria Auxiliadora Seabra Rezende, ou Dorinha, nasceu em Goiânia e é pedagoga. Mudou-se para o Tocantins no início dos anos 1990 e foi secretária de Educação no estado por nove anos, antes de se eleger para seu primeiro mandato na Câmara, iniciado em 2011.

Dorinha é uma das 77 mulheres eleitas para a Câmara nas últimas eleições. Está há quase 10 anos na Casa, em seu terceiro mandato, com atuação ligada ao tema da educação.

Discreta, ela fala sempre em um tom gentil e sem muitas alterações no tom de voz. Mãe de dois filhos, Thays, 31, e Victor Hugo, 29, Dorinha, 55, é casada há 34 anos com o empresário Fernando Rezende.

Ela decidiu ser professora por influência da mãe, Maria Consuelo, que também foi docente e faleceu em fevereiro após um período internada. A perda da mãe ocorreu em meio à reta final do Fundeb –a pandemia do novo coronavírus acabou adiando a pauta.

Com experiência, a deputada fala do tema com desenvoltura, e não raro faz digressões para citar dados e especificações técnicas da área.

Ao ler seu relatório, a deputada fez questão de ressaltar que aquele era um texto coletivo, construído a partir do consenso possível, embora o governo tenha sido ausente. Por se tratar de tema com alto impacto orçamentário, a articulação com a área econômica é sempre crucial.

"Em um projeto de lei, em uma comissão, você conversa, se acerta, o problema é que a gente não tinha com quem conversar", conta.

Os próprios interlocutores do governo mudavam, segundo dizem ela e outros deputados envolvidos. Nos encontros, cada grupo trazia posições diferentes, muitas das quais já superadas no debate.

Isso ocorreu inclusive na reta final: na segunda-feira (20) ela falou com um grupo, quando se desenhou um acordo, mas na terça o diálogo se fez com outras pessoas.

A atuação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), segundo ela, foi preponderante para que não só a PEC fosse pautada e aprovada como também para a manutenção das linhas gerais do texto diante do assédio do governo.

Dorinha não abriu mão de pontos essenciais da PEC ao longo das negociações. A proposta passou por alterações desde o início de 2019, mas, em geral, manteve um teor que exigiria um esforço federal considerável.

Em setembro de 2019, minuta apresentada por ela chegou prever uma complementação da União de 40%.

O texto refletia proposta em trâmite no Senado e sinalizava um esforço de concertação e compartilhamento de responsabilidades no Congresso.

Assim que veio à tona, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub convocou coletiva para refutar a versão e disse que governo mandaria uma versão nova mesmo que a tramitação começasse do zero.

O Ministério da Economia, por sua vez, vazou projeções de impacto superestimadas. "O mundo caiu na minha cabeça", relembra ela.

Na época, congressistas e alguns especialistas que acompanham o tema chegaram a criticar Dorinha na condução das negociações políticas, argumentando que a resistência à proposta poderia inviabilizar a aprovação em tempo hábil.

Após novas negociações, o texto passou a prever uma complementação de 20%, mas no final ele foi aprovado com 23%, contanto que 5% sejam investidos em educação infantil. Esse ponto foi uma digital que governo federal conseguiu imprimir no Fundeb.

A atual gestão não emplacou, por sua vez, ideias que previam o uso desse dinheiro em escolas privadas –no esquema de voucher– e a possibilidade de pagamento de aposentadorias.

Nesta quarta-feira (22), Dorinha não conseguia administrar o volume de mensagens no celular. Acumulam-se apoios vindos de professores e dirigentes educacionais de vários estados, como Maranhão, Mato Grosso, Ceará, e também de artistas.

"Foi uma luta muito grande. Se não fosse um tema com um debate tão perto da sociedade, haveria riscos grandes", diz. "O mais importante foi o esteio que tínhamos e a clareza do que queríamos."