Identificar criminoso nas redes é desafio para lei das fake news
Parte dos especialistas ouvidos pela reportagem sustenta, no entanto, que o anonimato na internet não existe de fato
O projeto de lei sobre fake news aprovado no Senado e agora em discussão na Câmara permite que as plataformas solicitem documentos de identificação aos usuários em algumas situações, como em caso de desrespeito ao que está previsto na lei, quando há ordem judicial ou se há suspeita de que a conta seja inautêntica ou um robô não identificado.
Mesmo não dizendo que o fornecimento de documentação é obrigatório, o projeto cria a definição de conta identificada, que seria "a conta cujo titular tenha sido plenamente identificado pelo provedor de aplicação, mediante confirmação dos dados por ele informados previamente".
Durante a tramitação no Senado, uma das versões apresentadas chegou a determinar a exigência do fornecimento de documento de identidade válido e número de celular para criação de uma conta em rede social ou em serviço de mensagem.
Apesar de este ponto ter caído, após ser alvo de críticas, ele envolve uma questão que está longe de ser consenso: como identificar usuários que tenham cometido atos ilícitos nas redes.
Entre os que defendem maior exigência de documentação por parte de plataformas há quem argumente que, ao mesmo tempo em que a Constituição Federal garante a liberdade de expressão, também veda o anonimato. E, por isso, manifestações anônimas na internet seriam ilegais.
Parte dos especialistas ouvidos pela reportagem sustenta, no entanto, que o anonimato na internet não existe de fato, pois o Marco Civil da Internet, que foi aprovado em 2014, já determina a serviços, como as redes sociais, o armazenamento dos chamados registros de acesso.
Esses registros, que se referem à conexão do usuário, incluem IP da conexão, data, hora do acesso e podem ser solicitados por meio de ordem judicial.
A partir desses dados, fornecidos pela plataforma, solicita-se então aos provedores de conexão os dados referentes àquele IP, que podem ser tanto uma operadora de celular quanto uma empresa de banda larga.
E é aí que começa parte do dissenso entre os especialistas. Nem sempre os dados do IP são suficientes para identificar um usuário.
Por exemplo, caso o usuário tenha usado uma conexão de uma rede wifi pública e sem login, o IP não alcançaria uma pessoa específica. Também no caso de um computador compartilhado, como em uma biblioteca, mesmo que se chegue à máquina responsável, também não necessariamente se determina a pessoa por trás da postagem.
Outro exemplo são os IPs compartilhados, o que acontece em um domicílio em que mais de um aparelho pode ser identificado com o mesmo IP pelo provedor.
A advogada Patricia Peck, especialista em direito digital, é favorável à exigência de identificação em casos de contas denunciadas.
"Dizer que a gente consegue identificar a autoria e a identidade só pela conexão de internet não é o que tem sido realidade desde o Marco Civil da Internet, até pela falta de colaboração dos provedores de aplicação [plataformas]", disse.
Críticos apontam que a denúncia de uma conta apenas é um requisito muito amplo. Isso poderia ocorrer, por exemplo, por disputas políticas e não necessariamente por algum motivo de atuação ilícita.
Para Peck, o projeto de lei só não deveria chegar a definir a forma de identificação que seria exigida pela plataforma, sob o risco de se tornar obsoleto. "Hoje estamos falando de mostrar um número de documento, de número de IP, e amanhã nós evoluímos para que todo mundo se autentique na internet usando reconhecimento facial, ou por biometria."
Já Francisco de Mesquita Laux, advogado especialista em direito e tecnologia, discorda, pois para ele os dados previstos no Marco Civil já são suficientes.
Ele pontua que uma pessoa má intencionada na rede dificilmente vai apresentar um documento verdadeiro e, por isso, não faria sentido exigir mais documentos dos usuários.
"O titular da conta [fornecido pelo provedor de conexão] é um dado que tem imparcialidade, porque ele não vem da pessoa, ele vem de um terceiro que tem o dever de guardar e registrar certas informações. O investigado, se ele tiver cometido um ilícito, a chance de ele apresentar um documento que não condiz com quem de fato praticou a comunicação é considerável", afirmou.
Segundo Laux, mesmo em casos de uso de computadores ou redes públicas, a investigação não é impossível.
Diversas partes do projeto acabam por se relacionar direta ou indiretamente à identificação dos usuários. O projeto determina, por exemplo, que contas inautênticas são vedadas. Segundo o texto, uma conta inautêntica seria aquela "criada ou usada com o propósito de assumir ou simular identidade de terceiros para enganar o público". O texto abre exceção para os casos de uso de nome social, pseudônimo, "explícito ânimo humorístico" e paródia, mas não fica claro como isso ocorreria.
Além disso, para Francisco Venancio, membro fundador do Wiki Movimento Brasil, o projeto cria uma insegurança jurídica para plataformas colaborativas como a Wikipedia, pois, até que se tenha uma decisão judicial, não se sabe se ela seria ou não enquadrada no conceito de rede social do projeto.
"A possibilidade da edição pseudônima acaba sendo importante para esse processo, porque permite que as pessoas editem sem medo de terem repercussão em suas vidas privadas", disse.
A advogada e professora da Universidade de Brasília Ana Frazão considera fundamental analisar se as ferramentas apontadas pelo projeto de lei serão de fato efetivas para atender os objetivos a que ele se destina.
"A exigência da identificação resolve por completo o problema da conta inautêntica? Não necessariamente, porque quantas e quantas manipulações de documentos e fraudes existem no Brasil, com base também em situações em que os documentos das pessoas são usados de forma indevida."
Para Peck, não faz sentido a discussão de que se estaria invadindo privacidade das pessoas ao exigir documentos, porque as plataformas já estão guardando diversas informações sobre as pessoas.
Frazão concorda que há uma assimetria informacional gigantesca entre os usuários e a plataformas, mas considera a questão delicada.
"O número de informações que essas plataformas podem ter a nosso respeito é realmente muito alto, mas uma coisa é certa, ninguém tem como informar [o quanto elas já sabem]. E sempre que se exige um dado a mais, parte-se da premissa que isso pode estar expondo ainda mais essas pessoas."
A professora diz ter muito mais dúvidas do que respostas sobre o projeto e, por isso, defende um debate com calma para que haja tempo de analisar não só as propostas, mas também as alternativas. Caso contrário, Frazão diz que "o remédio pode se transformar em um veneno".