Mestre da sonoridade africana, Mateus Aleluia leva os terreiros a seu novo disco
Projetado nos anos 70 com o grupo Tincoãs, cantor lança seu terceiro álbum solo
"Andei céu, terra e mar a procurar meu bisavô", canta Mateus Aleluia na abertura de seu novo disco, "Olorum". O álbum é mais um passo na busca de uma vida inteira.
"Aquilo que procurei anos atrás, continuo procurando", diz o artista, que integrou os Tincoãs, grupo que revolucionou a música brasileira adaptando para coros doces os cânticos do candomblé na década de 1970. "É temporal, uma circunstância que nos acompanha. Nesse mundo são poucos que têm a possibilidade de fazer sua árvore genealógica. No nosso caso, não foi bem assim."
Aleluia nem conheceu os avós. Mas ele não está falando só da própria história em "Olorum". A canção, da mesma forma que quase toda a sua obra, é uma perseguição da ancestralidade pela cultura --em especial a música e a religião.
No caso de Aleluia, essas não são coisas separadas. Nascido em Cachoeira, no Recôncavo Baiano --com forte presença de afrodescendentes--, ele cantava na igreja desde cedo, mas frequentava rodas de samba e terreiros de candomblé.
"Na minha época, a Igreja Católica tinha poder total sobre o Estado. Você aprendia primeiro o que o colono dizia que tinha que aprender. O candomblé tinha que ser praticado de forma escondida. E eles não sabiam, mas os católicos também já eram tocados pela religiosidade dos africanos. Isso permitia que a gente já vivesse de uma forma sincretizada."
Aleluia diz que se viu com um violão pela primeira vez quando tinha uns 12 anos. "Na minha cidade, acho que todo mundo era da música. Sempre fez parte. Nunca fui violonista, só tocava o violão. Mas também tocava surdo. Quando fui para os Tincoãs, precisava de um atabaque, mas eu já tinha, de forma intuitiva e contornada, os ritmos do candomblé."
Os sons de sua infância eram os tambores e os cantos dos terreiros. "A música, quando me impactou pela primeira vez, foi na barriga da minha mãe. À noite, era aquela batucada que ecoava. Você passava a ser aquilo por osmose, porque é contagiante."
A relação de Aleluia com a música, na verdade, era como uma extensão do cotidiano. Algo que precede a música gravada, a indústria fonográfica e até o conceito de fama.
Aleluia, hoje com 76 anos, vive a pandemia sem sair de casa. Diz que tem sido uma espécie de retiro. Mas, no último fim de semana, ele apresentou o novo disco numa live. Atingiu 25 mil pessoas tocando sozinho seu violão, no que, para ele, mais parecia um ensaio.
"Olorum", seu terceiro disco solo --e primeiro todo autoral--, chega dois anos depois de "Fogueira Doce" e dez anos depois de "Cinco Sentidos".
É a sequência de uma carreira interrompida pelas duas décadas que ele viveu em Luanda, de 1980 a 2002. Longe do Brasil, ele aprofundou seus estudos em música e religião, contratado como pesquisador pelo governo angolano.
Em 1983, pouco antes da viagem, Aleluia viu João Donato pela última vez até 2017, quando se encontraram num evento em Los Angeles. "Ele já participou de tantos discos nossos. Foi fundamental naqueles arranjos dos Tincoãs."
O músico é um dos convidados no novo disco de Aleluia. Ele toca em "Amarelou" e "Bem-te-vi". "Olorum", produzido por Ronaldo Evangelista, ainda traz instrumentistas como Thiago França, Zé Nigro e Sergio Machado, entre outros.
O reencontro com Donato remete à fase mais clássica da carreira de Aleluia, dos discos "O Africanto dos Tincoãs", de 1975, e "Os Tincoãs", de 1977. O grupo, ainda sem ele, tinha Erivaldo --que depois saiu--, Heraldo e Dadinho, quando cantavam bolero nos anos 1960.
Quando Aleluia entrou na banda, eles passaram a buscar mais profundamente a sonoridade cândida, apoiada nas vozes simultâneas, com a qual ficaram marcados. Com essa formação, gravaram três discos, atingindo um sucesso relativo na época. Já em Luanda, Aleluia e Dadinho gravaram o último álbum do grupo.
Mesmo baianos, os Tincoãs fizeram carreira no Rio de Janeiro, onde as gravadoras funcionavam. Nos anos 1970, o samba começava a alcançar públicos mais amplos, ancorado no sucesso de Martinho da Vila --também próximo do ritmo dos batuques e das religiões de matriz africana.
Foi, a princípio, por intermédio do sambista que Aleluia foi a Luanda. "Aquilo mexeu com a gente. Saímos de um regime militarizado e lá ficamos, gostamos. Achamos que havia uma possibilidade mais doce de se fazer arte. Lá, a arte fazia parte da vida. Não tinha glamour. Era como no Recôncavo, que você cantava e depois era a mesma pessoa. Ninguém vinha pedir autógrafo."
De volta ao Brasil, ele passou a unir com mais contundência a música e o ensino --atividades que, de diferentes maneiras, sempre praticou. Hoje, com a internet, facilitando o acesso a obras que estavam fora catálogo, o legado dos Tincoãs parece mais vivo do que nunca.
Músicas do grupo, entre elas a clássica "Cordeiro de Nanã", inspiram remixes e são influência inegável para novas gerações. Nesta semana, o rapper Emicida lembrou uma frase de Aleluia, seu "mestre", durante uma entrevista no Roda Viva.
"Emicida, BNegão e o hip-hop são a nova trova. Eles trazem o que o Brasil precisa ouvir. Não que não precise ouvir outras coisas", diz Aleluia. "O que eles fazem tira as pessoas da zona de conforto."
Quanto mais o tempo passa, a arte de Aleluia parece ficar mais relevante. Um total contraste com o cenário em que ele viveu --de sambistas perseguidos e ritos na ilegalidade. "Você perguntou quando me vi com um violão. Eu digo --foi correndo da polícia."
"O que veio primeiro foi o oxigênio", diz. "Quando chorava, todo mundo sorria --é assim com bebês. Fui crescendo nesse embalo. O resto vamos tomando consciência ao longo da vida. Quer dizer, consciência sobre o candomblé nunca tomamos --ou talvez sempre tivemos. À medida que amadurecemos, vamos tendo as armas. Não é uma coisa pensada, é um instinto de defesa."
OLORUM
Artista: Mateus Aleluia
Gravadora: Selo Sesc
Onde: nas plataformas digitais