Conheça 'Inabitável', curta pernambucano selecionado para o Festival de Gramado
Filme foi dirigido pelos pernambucanos Matheus Farias e Enock Carvalho foi selecionado para o circuito
Embora tenha se agravado durante a pandemia da Covid-19, o cenário não era nada agradável a pessoas pertencentes a minorias representativas em nosso País. No cinema, dezenas de produções recentes soaram como um manifesto contra essas opressões, formando um verdadeiro catálogo de clássicos que tomaram a bilheteria nacional. Em “Inabitável”, essa característica não é distinta. O curta-metragem recém selecionado para o Festival de Gramado, um dos principais circuitos do cinema nacional, mostra a história de uma mãe à procura de uma filha trans no período que antecede a crise sanitária do novo coronavírus. A produção pernambucana, a única do Estado escolhida para a mostra, foi dirigida por Mateus Farias e Enock Carvalho, e tem estreia no Kinoforum - Festival de Curtas-metragens de São Paulo, onde será realizado entre os dias 20 e 30 de agosto. Já em Gramado, a película tem previsão de exibição para o mês de setembro, em formato virtual.
No filme, a atriz baiana Luciana Souza interpreta Marilene, que busca a sua filha Roberta após uma noite de festa. Colocando questões sociais em uma trama de suspense, o curta acompanha a jornada de uma mãe que vivencia as preocupações de familiares em meio a um genocídio da população trans brasileira. Embora remeta a uma época recente, a produção começou a ser pensada há três anos. “A primeira vez que pensamos no roteiro foi em meados do final de 2017, quando o Brasil já passava por uma desestabilização política muito grave. Já vivíamos um período de muito medo e incertezas. O roteiro foi acompanhando a evolução dos fatos que se sucederam a partir daí até chegar no momento de rodar o filme, que foi filmado em dezembro de 2019, e o trabalho de pós-produção continuou pelos meses seguintes”, conta Enock Carvalho, que assina roteiro e direção.
“Inabitável” pode ser considerada uma síntese de violências simbólicas e estruturais à comunidade LGBTQIA+ no Brasil. A história não é um caso isolado e o sumiço da personagem traduz sentimentos de medo, violência e desproteção a membros da sigla. “O Brasil nunca foi um país seguro para os LGBTS e, principalmente, para as pessoas trans, mas desde as eleições de 2018 o País foi tomado por um discurso de ódio ainda mais pungente. Somos o País líder em morte de transexuais. No filme, o desaparecimento de Roberta é a força motriz da narrativa, pois seu sumiço não é considerado um acontecimento comum. Tem uma série de violências associadas ao fato de uma pessoa trans estar desaparecida. Esse estado de emergência talvez dê conta dessa sensação constante de medo e ameaça as quais estamos submetidos todos os dias”, explica o diretor Matheus Farias.
Esta não é a primeira parceria da dupla. Eles, que são casados, já fizeram outros dois curtas juntos e estão desenvolvendo dois longa-metragens juntos. O primeiro deles, “A Margem Escura do Rio”, tem relação muito próxima dos curtas anteriores, como aponta Matheus Farias. “Nossa parceria surgiu muito naturalmente da nossa vontade de realizar filmes juntos. Somos casados, cinéfilos e desde 2015, quando fizemos nosso primeiro curta-metragem juntos (“Quarto para alugar”), não paramos de criar. Esse é o nosso terceiro filme em parceria e vejo que estamos amadurecendo juntos no que diz respeito a produzir, roteirizar e dirigir nossos filmes. Nesse momento temos dois longas-metragens em desenvolvimento. O primeiro deles, “A Margem Escura do Rio”, tem uma relação muito forte com os nossos curtas-metragens. Estamos trabalhando no roteiro e em breve, se tudo der certo, poderemos filmar.”.
Olhares diversos na construção
Além de falar sobre minorias, especialmente sobre a comunidade trans, a construção do filme também tenta abarcar a diversidade. O elenco, com escolha de André Silva, tem a participação de Luciana Souza, Sophia William e Erlene Medeiros. “Não apenas o elenco, mas a nossa equipe foi formada por um time de profissionais que nos orgulha muito. Na frente e atrás das câmeras tivemos muitas pessoas LGBTs, mulheres, pessoas não-binárias, pretos e pretas. É um filme construído a muitas mãos, com olhares diversos. Isso pode ser visto na tela”, enfatiza Farias. Além de pernambucanos, a equipe conta com pessoas de outras partes do Nordeste. “Nesse filme tivemos uma oportunidade muito especial de trabalhar com profissionais da Bahia, do Ceará e até da Argentina. Isso não é muito comum no caso de curtas-metragens por causa do orçamento limitado, mas tivemos sorte de poder tê-los na equipe”, complementa Carvalho.
Recursos
Não dá para dissociar “Inabitável” do contexto político nem com a sua produção. O curta, que reuniu mais de 50 profissionais, foi realizado graças ao incentivo público - que vive um momento de desmonte de políticas públicas no audiovisual com a discussão em torno da distribuição do Fundo Setorial, da Cinemateca e a organização da própria Ancine. “O cinema brasileiro está ameaçado. Desde 2017 que as políticas públicas já vinham cortando incentivos e estimulando menos a arte, a cultura no geral. De dois anos pra cá, tudo parou. Não há mais editais federais, a gente não se sente valorizado, e criou-se na população o senso de que somos vagabundos, que não trabalhamos. Esse é um filme que só existe graças a políticas públicas. Ele tem incentivo do Funcultura Audiovisual, do Governo do Estado de Pernambuco.”, comenta Enock Carvalho.