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A Universidade de Oxford e o seu papel na produção de vacina contra a Covid-19

Hildo Rocha Cirne de Azevedo Filho, presidente da Academia de Medicina de Pernambuco - Giovanni Costa/Alepe

Desde logo declaro o meu conflito de interesse, fiz a minha formação neurocirúrgica na The Radcliffe Infirmary da Universidade de Oxford onde ao final defendi tese que me conferiu o título de Mestre em Neurocirurgia.

A descoberta da penicilina cristalina no início da década de 1940 foi um dos mais importantes eventos na história de toda a medicina. A partir de então, as bactérias puderam ser enfrentadas e destruídas por esse novo e miraculoso medicamento, responsável pelo resgate de centenas de milhares de vidas dos soldados aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Ressalte-se que esse fato foi mantido como um segredo de guerra, haja vista que as tropas nazistas nunca dispuseram da novel droga.

Até os dias de hoje, a maior parte da população mundial pensa que Sir Alexander Fleming tenha sido o autor dessa magnífica proeza. Ledo engano, e se torna necessária que a verdade histórica seja reposta, embora Fleming, juntamente com Howard Florey e Ernst Chain, tenham dividido o Prêmio Nobel de Medicina em 1945 mercê desse feito.

Alexander Fleming era um bacteriologista trabalhando no Hospital Saint Mary’s em Londres. Em 1928, ele identificou em suas placas a presença de um fungo que destruía colônias de estafilococos, o qual foi por ele denominado de Penicillum notatum. Esse achado foi publicado em uma revista de bacteriologia, tendo o mesmo esquecido esse relato, visto que nunca nos desdobramentos dessa descoberta se deu ao trabalho de purificar o fungo que havia encontrado ou conjecturar alguma aplicação clínica.

Em 1938, um judeu alemão fugido da perseguição nazista chamado Ernst Chain e trabalhando no Departamento de Patologia da Universidade de Oxford chamou a atenção do chefe do departamento, professor Howard Florey, a respeito dessa publicação datada de nove anos antes, ocasião em começaram a trabalhar com esse fungo e estabelecer tentativas de purificá-lo.

Após extensos experimentos em ratos conseguiram demonstrar que os animais de laboratório, uma vez infectados por bactérias mortíferas, conseguiam sobreviver após serem injetados com a penicilina. Em 12 de fevereiro de 1941, no auge da blitz alemã, no meio de inclemente inverno e na histórica The Radcliffe Infirmary, e eu tive a felicidade de acessar os arquivos desse paciente, o professor Florey assim se expressou: ‘É chegada a hora de usar a penicilina cristalina em humanos, esse paciente vai falecer se não a empregarmos’.

Na verdade, a quantidade era tão escassa que a retiravam  da urina do doente, repurificavam e a  injetavam novamente. O paciente teve alguma melhora, todavia com a falta da quantidade de medicação necessária para debelar completamente o processo, o quadro infeccioso recrudesceu, tendo o mesmo vindo a sucumbir.

Devido ao esforço de guerra britânico, não havia condições financeiras para produzir a penicilina em larga escala. Desse modo, a equipe se transferiu para o Estado de Washington, nos Estados Unidos, e seis meses depois o milagroso fármaco estava nos campos de batalha da Europa.

Por que tamanha fama foi auferida por Fleming? Comenta-se que ele era muito amigo de Winston Churchill, que por seu turno se encarregou de colocar na grande mídia da época a importância do papel de Fleming na descoberta. Ao contrário de Florey, que como bom cientista era recatado nos seus contatos com a imprensa,

Fleming era falastrão e se aproveitou das conexões de Churchill com os meios de comunicação londrinos que, por sua vez, se encarregaram de hipertrofiar o seu desempenho no formidável evento.

Oitenta anos após, vemos a Universidade de Oxford liderando um avanço tecnológico que eventualmente possa vir a salvar a humanidade dessa tragédia perpetrada pelo traiçoeiro e mortífero vírus, cognominado de Covid-19.

Não sou obviamente especialista na área de vacinas, porém abstraindo a relação com a minha querida Universidade de Oxford, acredito que, se obtivermos uma vacina que venha a nos salvar, a de Oxford é, dentre as várias que se apresentam, como a que mais me proporciona sentimentos animadores. Claro que esse vírus, diabolicamente inteligente, apresenta centenas de mutações em seus genomas, o que torna o desenvolvimento da vacina salvadora mais complexo e demorado. Por outro lado, embora saibamos que o tempo urge, também entendemos que a pressa é inimiga da perfeição, entendimento substanciado quando analisamos as principais vacinas disponíveis no nosso armamentário e verificamos que a maioria desses imunizadores levou anos para serem colocados a serviço da população.

A princípio, cabe informar que esse grupo de pesquisadores da Universidade de Oxford ligado à produção da vacina em lide vem trabalhando em uma velocidade nunca vista nessa corrida em prol da proteção dos seres humanos do nosso planeta. Eles fazem parte do Instituto Jenner, que por mais de 30 anos tem se projetado na linha de frente do mundo científico no que tange ao desenvolvimento de várias vacinas que trouxeram proteção à raça humana.

Os resultados das fases I e II foram publicados no dia 20 de julho na revista The Lancet, os quais indicaram que não houve sinais precoces de preocupação no que concerne à biossegurança e que induziram forte resposta imune em ambas as porções do sistema imunológico. A vacina provocou uma robusta reação positiva das células T (células brancas que podem atacar células infectadas com o vírus SARS-CoV2) após 14 dias de administrada, aliada a uma admirável resposta dos anticorpos ao cabo de 28 dias. Os anticorpos foram, por conseguinte, capazes de neutralizar o vírus de tal sorte que ele não conseguiu infectar células sadias quando uma vez abordadas pelo agente agressor. As fases I e II do estudo britânico começaram em abril de 2020 e, durante essas etapas, a vacina foi testada em mais de 1.000 voluntários sadios com idades entre 18 e 55 anos, em um estudo randomizado controlado. Um subgrupo de 10 indivíduos recebeu duas doses da vacina. Essa fase foi concluída em 21 de maio de 2020 e em nenhum os 1.077 voluntários foi reportado qualquer efeito colateral de maior monta.

Os resultados encorajadores das fases I e II justificaram o acesso à fase III da pesquisa. Para a consecução desse projeto, além de convênios com outros parceiros como o Brasil, a Universidade de Oxford disponibilizou 84 milhões de libras esterlinas através de recursos governamentais e firmou associação com a companhia Astra-Zeneca, a fim de que se pudessem empreender futuros desenvolvimentos na produção em larga escala da tão esperada vacina, o que por certo trará um maior potencial para a distribuição mais profissional do medicamento. O programa global da fase III já foi iniciado quando se pretende imunizar 30.000 pessoas em vários países, notando-se que na África do Sul e no Brasil a imunização já está em estágio avançado de processamento. Em caso da mesma vir a ser eficaz, do ponto de vista social o contrato realizado entre a Universidade de Oxford e a AstraZeneca explicita enfaticamente que a citada companhia farmacêutica se comprometeu a promover um amplo e equitativo acesso a tão esperada nova droga, com o seu compromisso de prover mais de dois bilhões de doses a preços que possam ser absorvidos pelos países de menor poder aquisitivo.

Do ponto de vista técnico, a equipe de Oxford consta de mais de 100 pesquisadores liderados pelos professores Sarah Gilbert e Andrew Polard, entre outros. Essa equipe tem décadas de reconhecida experiência internacional com a pesquisa e produção de vacinas contra o Ebola, Flu, Zika e a MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), sendo essa última também causada por outro coronavírus. A vacina Covid-19 de Oxford apresenta certa particularidades técnicas que sumariamente podem ser descritas da seguinte forma. Utiliza a ChAdOx1, que é um vetor da vacina, contra um adenovírus que afeta chimpanzés, que é mais das vezes inócuo e que frequentemente ocasiona gripes comuns nesses primatas. Esse adenovírus vetor tem sido empregado sem problemas em milhares de seres humanos. Uma vez associado a uma sequência genética do material proteico advindo de certas partes do invólucro da Covid-19, quando administrado na nossa espécie, esse conjunto adentra as células humanas que, por seu turno, usam esse código genético para produzir uma proteção à penetração do vírus agressor. Ao mesmo tempo induzindo uma resposta imunológica que serve como mecanismo de ataque ao novo corona.

Os resultados da fase III serão estatisticamente analisados comparando o número de infecções no grupo controle, ou seja, naqueles que cegamente receberam o placebo, com o acontecido com os indivíduos que verdadeiramente receberam a vacina. Se o nível de contaminação atual permanecer elevado, se estima que em dois meses se possa concluir se a profilaxia foi efetiva ou não. Se por ventura o nível de infecções for reduzido, os resultados poderão demandar mais tempo para serem aferidos. O recrutamento está sendo priorizado entre aqueles que têm maior probabilidade de contraírem a doença, como profissionais de saúde e trabalhadores de serviços públicos essenciais.

Por fim, a vacina de Oxford é apenas uma entre as centenas que estão sendo pesquisadas nos vários recantos do planeta. Idealmente,seria excelente para a raça humana que várias delas fossem eficazes e tivessem sucesso. Indubitavelmente, as lições, o aprendizado e o conhecimento auferidos pelo grupo de Oxford, estimo que outras equipes também se comportem da mesma forma, estão sendo divididos com outros centros de pesquisa espalhados pelo mundo, a fim de que obtenhamos mais chances de derrotar esse inimigo algoz e mortal. Se esse entrelaçamento científico vier a acontecer, a humanidade, além de melhorar o seu  comportamento, ficará para sempre agradecida e a ciência, melhor preparada para enfrentar pandemias semelhantes que sem dúvida virão a nos assolar no futuro.

*MD, PhD, MSc, FRCS Ed Professor Titular de Neurocirurgia da Universidade de Pernambuco. Presidente da Academia Pernambucana de Medicina