Uso de nova CPMF para desonerar a folha pode ser positivo, diz especialista
'A substituição pode ser boa, se ela realmente atingir o objetivo de melhorar o emprego', afirma Quiroga
O tributo sobre movimentações financeiras proposto pelo governo federal é uma nova versão da velha CPMF, segundo Roberto Quiroga, sócio-fundador do escritório Mattos Filho, especialista em Direito Tributário e professor da FGV.
Para ele, esse tributo é ruim e vai onerar todas as etapas da produção. Porém, pode ser a única alternativa para viabilizar uma desoneração da folha de pagamentos. "A substituição pode ser boa, se ela realmente atingir o objetivo de melhorar o emprego", afirma Quiroga.
Pergunta - Como o senhor vê o projeto do governo de reforma do PIS/Cofins comparado com as duas propostas de reforma tributária mais abrangentes da Câmara e do Senado?
Roberto Quiroga - Essa não é a reforma total do governo. A gente ainda está esperando uma segunda fase que eles estão falando em apresentar ainda em agosto. Essa proposta é muito parecida com a PEC 45 e a PEC 110 [respectivamente, as propostas da Câmara e do Senado], que criam um Imposto sobre Valor Agregado, enquanto a do governo é uma contribuição. Elas têm uma semelhança, que é a simplificação, mas as duas PECs preveem a unificação de mais tributos.
A ideia do governo é de simplificação, mas é uma reforma um pouco tímida, se esperava mais. Talvez isso venha com a segunda parte da reforma. Um aspecto importante é que, segundo o governo, a ideia não é arrecadar mais. Alguns setores que pagavam menos vão pagar mais e setores que pagavam mais talvez vão pagar menos. Ele fez uma redistribuição da carga tributária.
Em todas as propostas, há uma resistência muito grande do setor de serviços. Essa redistribuição de carga tributária é justa ou deve haver uma diferenciação para esse setor?
RQ - No setor de serviços, a maioria é tributada por um PIS/Cofins de 3,65%. Quando muda para 12%, está praticamente triplicando a carga. Algumas empresas grandes pagam 9,25%.
Claramente tem um aumento de carga tributária para o setor de serviços. É inegável. Até mesmo o governo admite isso, que algumas áreas vão ter de pagar pelas outras.
Mas é um aumento muito expressivo para os prestadores de serviços. Esse grupo que teve aumento de carga vai tentar repassar para o preço esse tributo e, eventualmente, isso pode gerar mudanças de preços relativos de serviços. Isso pode criar uma desestrutura em algumas áreas, como educação. Uma mensalidade vai ter uma tributação de 12%. Vai repassar para os pais?
Outras talvez tenham certos benefícios. A área comercial e industrial vão acabar pagando uma alíquota efetiva talvez menor, porque nesse modelo todo bem e serviço que você compra gera crédito. Pode ser que o comércio e a indústria tenham uma melhora da sua carga tributária.
É justamente isso que o governo falou, que ele transferiu carga tributária de uns para outros. Se é justo ou injusto é difícil de falar. Tem de ver se o setor de serviços aguenta esse tamanho de aumento da alíquota.
Existe uma crítica de que alguns prestadores de serviços, especialmente profissionais liberais, seriam pouco tributados, alguns que estão no lucro presumido [para empresas com faturamento de até R$ 78 milhões por ano que não estão no Simples] e que poderiam dar uma contribuição maior. O senhor concorda?
RQ -Acho que sim. Realmente o lucro presumido é um modelo bastante benéfico. Talvez exista realmente um "gap" em que você possa aumentar, sem dúvida.
A dúvida é se de 3,65% para 12% não é um aumento muito grande. Eu acho que sim. Talvez algumas empresas que tributam pelo lucro presumido pudessem ter uma carga tributária maior, mas talvez isso seja muito excessivo. Uma coisa é mudar para 5% ou 6%. Realmente é uma mudança muito grande.
O senhor avalia que, por conta da pandemia, deveria haver uma mudança de foco nas discussões sobre a reforma tributária, priorizando outros temas, como a tributação sobre a renda? Ou tem de começar mesmo pela questão do consumo?
RQ -A reforma mais urgente, mais prioritária é na área de consumo. É uma prioridade, porque a gente tem a guerra fiscal, 27 legislações diferentes nos estados. Além disso, você tem tributo estadual, federal, municipal.
Foi uma boa ideia do governo começar pelo consumo. Talvez o governo sofra mais resistência com a próxima reforma que vai apresentar, do Imposto de Renda, porque deve trazer também a CPMF. Ele está dizendo que vai trazer a CPMF, mas vai reduzir a tributação sobre a folha de salários. Está dando com uma mão e tirando com a outra.
O ministro Paulo Guedes (Economia) diz que a proposta do governo não é criar uma nova CPMF.
RQ -Isso é enganoso. A CPMF antiga incidia sobre a circulação da moeda, do dinheiro, quando tinha um débito bancário. Agora ele está falando que esse novo tributo é um imposto digital, como se fosse uma coisa que não tributasse a moeda. Mas para arrecadar os R$ 120 bilhões que ele está falando, só pode ser uma tributação sobre a moeda.
Pode dar o nome que quiser, pode chamar de tributação sobre meios de pagamento, sobre esfera digital, mas, na verdade, o que ele vai tributar é a circulação da moeda e, portanto, é CPMF. A natureza vai ser a mesma, infelizmente.
É boa troca substituir a tributação da folha pela CPMF?
RQ -A CPMF como tributo é ruim. Isso ninguém tem dúvida. A tributação sobre folha também é. Qual é a menos ruim? É difícil de falar, porque o governo diz que quer a CPMF, mas que vai reduzir a tributação sobre folha, quer desonerar o emprego.
Tirando isso as empresas poderiam contratar mais, etc. Coisa que ele não sabe se vai acontecer na prática efetivamente. Por um lado o governo tem razão. Se quer privilegiar o emprego, é interessante desonerar a folha. Por outro lado, ele cria um tributo em cascata, cumulativo, que vai onerar todas as etapas da produção.
A substituição pode ser boa, se ela realmente atingir o objetivo de melhorar o emprego. Acho que teria de ter uma desoneração da folha, não acho que deveria haver a CPMF, mas, pelo jeito, talvez seja impossível.
Não há outra forma de fazer essa substituição, que seria menos ruim?
RQ -Não vejo alternativa. É a única bala que ele tem no revólver. Ele não tem um plano B. É simplesmente a CPMF.
Há uma crítica de alguns grupos de que um IVA (Imposto sobre Valor Agregado), como proposto nessas reformas, é um tributo do passado e que o imposto do futuro seria digital, único, sobre movimentações.
RQ -O IVA é um tributo antigo, mas é eficiente, funciona em várias partes do mundo moderno. Um tributo sobre transações ainda é muito utópico. O IVA é a alternativa que está aí.
O governo vai enviar uma proposta de reforma do Imposto de Renda. Como o senhor vê a questão da tributação da renda?
RQ -Mexer no Imposto de Renda é possível, talvez criar uma alíquota de 35%, tributar mais as rendas altas é justo, mais progressivo. O Imposto sobre Grandes Fortunas [IGF] é outra ilusão. É um tributo que não vai arrecadar, que afugenta capitais. Ele tem mais um viés político do que de arrecadação, tanto que ele foi abolido de vários países e hoje é residual no mundo. Ainda que se tenha uma boa intenção de tributar os mais ricos, não é pelo IGF, é pensar em uma tributação do IR que seja mais justa.
RAIO-X
Roberto Quiroga
Sócio-diretor do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados, professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e do Mestrado Profissional da Escola de Direito da FGV (Fundação Getulio Vargas). Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestre e doutor em Direito Tributário pela PUC-SP